“Nomadland”, um drama social, que documenta a vida na estrada de norte-americanos postos à margem na sequência da crise do ‘subprime’, triunfou na edição dos Óscares marcados pela pandemia, conquistando três das sete estatuetas para que estava nomeado.
Esta edição dos Óscares, a 93.ª, que bateu o recorde de nomeações para mulheres, atingindo as 76, prefigura-se, porém, como histórica de várias formas, pela diversidade, e além das restrições provocadas pela pandemia, que levaram a gala a diferentes palcos.
Foi nesta edição que a primeira mulher não branca venceu o Óscar de Melhor Realização (Chloé Zhao), que uma atriz coreana conseguiu um Óscar de representação (Yuh-Jung Youn), e que as primeiras mulheres afro-americanas conquistaram o Óscar de Melhor Caracterização (Mia Neal e Jamika Wilson).
A reflexão sobre o impacto da crise financeira de 2008, em estratos mais frágeis da sociedade, confirmou o favoritismo que “Nomadland – Sobreviver na América” trazia dos Globos de Ouro e dos BAFTA, os prémios da academia britânica de cinema e televisão, conquistando o Óscar de Melhor Filme, o de Melhor Realização, para Chloé Zhao e o de Melhor Atriz, para Frances McDormand.
O filme, que já soma mais de 220 prémios, de academias de cinema, de associações profissionais do setor, de críticos e de festivais, conta a história de uma mulher que viaja pela América como nómada, vivendo numa caravana, trabalhando em empregos temporários e sobrevivendo na estrada, na sequência da crise económica.
Embora o filme seja uma ficção, assenta em testemunhos reais de norte-americanos que vivem na estrada, sempre em trânsito, numa comunidade envelhecida e nas margens da sociedade.
Com este filme, Chloé Zhao foi a segunda mulher, em 93 edições dos Óscares, a conquistar o prémio de Melhor Realização, sucedendo a Kathryn Bigelow, com “Estado de Guerra”, em 2010. Zhao foi ainda a primeira realizadora de origem asiática a ser nomeada para esta categoria. Pela primeira vez, houve também uma segunda realizadora nomeada, Emerald Fennell, por “Promising Young Woman – Uma miúda com potencial”.
Ao receber o prémio, Chloé Zhao dedicou-o “a todos aqueles que tiveram a fé e a coragem de se agarrar à bondade em si próprios e nos outros”.
“Sempre encontrei bondade nas pessoas que conheci, em todos os lugares do mundo onde estive”, disse a realizadora.
Com este reconhecimento, a sino-americana, nascida na China, deu continuidade a uma lista de cineastas estrangeiros (não norte-americanos) que têm dominado o Óscar de Melhor Realização, desde 2011, quando o britânico Tom Hooper foi distinguido por “O Discurso do Rei”, e que segue até ao sul-coreano Bong Joon-ho, por “Os Parasitas”, no ano passado.
Esta lista de realizadores premiados, não norte-americanos, inclui o francês Michel Hazanavicius (“O Artista”), Ang Lee (“Vida de Pi”), nascido em Taiwan, os mexicanos Alfonso Cuarón (“Gravity”, “Roma”), Alejandro G. Iñárritu (“Birdman”, “Renascido”) e Guillermo del Toro (“A Forma da Água”). Em dez anos, só em em 2016 um norte-americano, Damien Chazelle (“La La Land”), conseguiu o galardão.
Quanto a Frances McDormand, com este Óscar, entrou no pequeno grupo de atrizes com mais de duas estatuetas da Academia, juntando-se a Meryl Streep e Ingrid Bergman (três Óscares, cada), e a Katharine Hepburn (quatro Óscares). Mais: conseguiu um pleno, ao vencer as três nomeações para melhor atriz, depois de “Fargo” (1996) e de “Três Cartazes à Beira da Estrada” (2018).
Ao todo, McDormand soma seis nomeações para os Óscares, três delas como atriz secundária: “Terra Fria” (2005), “Quase Famosos” (2000) e “Mississippi em Chamas” (1988).
No momento em que “Nomadland” recebeu o Óscar de Melhor Filme, Frances McDormand, que também o produziu, apelou a que o público o fosse ver em sala, num grande ecrã, “no maior grande ecrã possível”, “muito, muito em breve”, e que visse também “todos os filmes desta noite”, numa afirmação para superar a pandemia, com a possibilidade de todos poderem sentar-se “lado a lado”.
“Nomadland” tem por base a reportagem em livro da jornalista Jessica Bruder, que acompanhou as novas famílias nómadas, surgidas com a crise financeira, à semelhança das que, na década de 1930, inspiraram “As Vinhas da Ira”, de John Steinbeck, e o filme homónimo de John Ford.
Foi Peter Spears, outro dos produtores de “Nomadland”, que descobriu a história e a levou a Frances McDormand. A atriz sugeriu a realizadora Chloé Zhao, que a impressionara com o seu filme anterior, “The Rider”. Os três acabaram ligados pela produção da obra.
Chloé Zhao criou a personagem de Fern, congregando vários protagonistas do livro de Bruder. A realizadora restaurou ainda a rede nómada seguida pela jornalista, incorporando, entre os atores, as figuras reais de Linda May, Swankie e Bob Wells.
Na lista de nomeados para Melhor Filme, que também incluía “Mank”, “Uma miúda com potencial”, “O Pai”, “Judas and the Black Messiah”, “Minari”, “Sound of Metal” e “Os 7 de Chicago”, quase todos obtiveram pelo menos um dos Óscares para que estavam nomeados, embora “Nomadland” tivesse arrecadado os principais prémios.
“Mank”, de David Fincher, que, com dez indicações, liderava as nomeações para esta edição dos Óscares, obteve apenas dois, os de Melhor Cenografia e de Melhor Direção de Arte.
Produzido pela Netflix e ignorado nos Globos de Ouro, onde também foi o mais nomeado, “Mank” estava indicado em categorias como Melhor Filme, Realização, Cinematografia, Ator Principal (Gary Oldman) e Atriz Secundária (Amanda Seyfried).
Dos nomeados para Melhor Filme, “O Pai”, que somava seis nomeações, conseguiu duas, Melhor Ator Principal e Melhor Argumento Adaptado. O britânico Anthony Hopkins, que não esteve presente na cerimónia, conquistou o seu segundo Óscar de Melhor Ator, 30 anos após a distinção pelo papel de Hannibel Lecter, em “O Silêncio dos Inocentes”, de Jonathan Demme.
A mesma relação se aplica a “Judas and the Black Messiah”, outro candidato a Melhor Filme, que teve dois Óscares, em seis nomeações, conquistando os de Melhor Ator Secundário (Daniel Kaluuya) e de Melhor Canção (“Fight For You”).
“Sound of Metal” (“O Som do Metal”) obteve igualmente dois Óscares, Melhor Montagem e Melhor Montagem de Som, em seis nomeações.
Quanto a “Minari”, viu as seis nomeações reduzidas a um Óscar, o de Melhor Atriz Secundária, para Yuh-Jung Youn.
“Promising Young Woman – Uma miúda com potencial”, que teve cinco nomeações, conquistou o de Melhor Argumento Original para Emerald Fennell.
Dos indicados para Melhor Filme, só “Os 7 de Chicago” ficaram a zero.
Num ano em que a maioria dos espectadores viu os filmes nomeados em casa, devido ao encerramento das salas de cinema por causa da pandemia de covid-19, as plataformas de ‘streaming’ assumiram um papel vital.
A Netflix foi a plataforma com mais indicações aos Óscares este ano, num total de 36 nomeações em 17 filmes, e saiu da cerimónia com o maior número de vitórias: sete estatuetas douradas.
“Mank” garantiu a vitória em Melhor Fotografia e Melhor Direção de Arte, “Ma Rainey: A mãe dos blues” venceu em Melhor Caracterização e Melhor Guarda-Roupa, “My Octopus Teacher” levou o Óscar de Melhor Documentário, “Two Distant Strangers” foi a Melhor Curta-Metragem e “If Anything Happens I Love You” foi a Melhor ‘Curta’ de Animação.
Das cinco nomeações, “Ma Rainey: A mãe dos blues” não logrou a de Melhor Atriz, para Viola Davis, nem a de Melhor Ator, o esperado Óscar póstumo para Chadwick Boseman.
A Disney, que detém a Searchlight e controla a Hulu, ficou em segundo na contabilidade do ‘streaming’, com cinco troféus, mas em categorias mais apetecíveis. “Nomadland” garantiu a vitória em três das principais, e “Soul” venceu Melhor Filme de Animação e Melhor Banda Sonora.
“Soul – Uma aventura com alma” conquistou dois Óscares, em três nomeações, deixando o de Melhor Montagem de Som para “Sound of Metal”.
A 93.ª cerimónia dos prémios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas decorreu entre a estação de comboios Union Station, na baixa de Los Angeles, e o Dolby Theatre, em Hollywood, com restrições devido à pandemia de covid-19.