João Cutileiro morreu hoje, aos 83 anos. O escultor estava internado num hospital de Lisboa com graves problemas do foro respiratório.
O mestre escultor cortou cedo com o academismo do Estado Novo, criando uma obra que dividiu opiniões, marcada pela polémica e pela voluptuosidade dos corpos em pedra.
O artista, que recebeu em 2018 a medalha de Mérito Cultural, detentor de doutoramentos Honoris Causa pelas universidades de Évora e de Lisboa, assinou duas das obras mais polémicas das últimas décadas em Portugal: a estátua de D. Sebastião, em Lagos, e o monumento ao 25 de Abril, no Parque Eduardo VII, na capital portuguesa, sobre o qual negou sempre uma intenção fálica.
Em 2018, assinou com o Ministério da Cultura, o município de Évora e a Universidade da cidade alentejana, um protocolo de doação do espólio e casa-atelier do artista, com a tutela a assumir a responsabilidade de dinamizar uma programação cultural e académica, com residências artísticas, exposições e formação na área da escultura em pedra.
Nascido a 26 de junho de 1937, em Lisboa, numa família antifascista, da média burguesia, João Pires Cutileiro viajou constantemente durante a infância e adolescência, devido à profissão do pai, José Cutileiro, médico da Organização Mundial de Saúde.
Com apenas nove anos, em 1946, acedeu ao atelier do artista plástico, ator e escritor António Pedro que o convidou para aí desenhar. É neste local, durante dois anos, que contacta com artistas, escultores e críticos, interessados no Surrealismo.
Um mestre da pedra
Seguiu-se, nos anos de 1949 a 1951, a frequência do estúdio do pintor e ceramista Jorge Barradas, onde aprendeu a modelar, pintar e executar vidrado de cerâmica, mudando-se depois para o atelier de António Duarte, onde trabalhou dois anos como assistente de canteiro.
Foi neste período que Cutileiro se iniciou no tratamento da pedra, pois o seu trabalho no atelier de António Duarte era o de ampliar os modelos do mestre canteiro, passá-los a gesso, e traduzir esses gessos para o mármore, como sublinham os seus dados biográficos, no Centro de Investigação para Tecnologias Interativas (CTI).
Com apenas 14 anos, em 1951, João Cutileiro fez a primeira exposição individual, ‘Tentativas Plásticas’, em Reguengos de Monsaraz, Alentejo, numa loja de máquinas de costura, apresentando peças de escultura, cerâmica, aguarelas e pinturas.
Foi nessa época, ainda durante a adolescência, que, numa viagem com o pai, passou por Florença e viu as esculturas de Miguel Ângelo, momento decisivo que recordou por diversas vezes, pela revelação que teve e pelo grande impacto na sua vida, ao aumentar a certeza de que queria fixar-se na escultura.
A faceta antifascista, da oposição, vinca-se nos anos 1960, quando passou pelo Partido Comunista Português, onde entrou e de onde saiu rapidamente, porque a “célula” a que pertencia se desmembrou, e os contactos se perderam – lembrou mais tarde.
Entrou então na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Aqui trabalhou com o professor e escultor Leopoldo de Almeida, mas, ao fim de dois anos, sentiu-se desiludido e frustrado com os constrangimentos ao experimentalismo. Concluindo que o problema era a mentalidade portuguesa, sob a ditadura, saiu do país.
Foi então levado por Paula Rego até à Slade School of Art, em Londres, onde a artista portuguesa também estudava.
Entre 1955 e 1959, nesta escola, a Slade, teve como mestre de escultura o britânico Reg Butler, nome determinante na arte britânica do pós-guerra, conhecido pelas suas esculturas femininas. Durante a formação, recebeu três prémios para composição, figura e cabeça.
A figuras articuladas de Cutileiro
Concluído o curso, Cutileiro permaneceu em Londres, onde se casou. Foi do segundo casamento, ainda na capital britânica, que nasceram os dois filhos, Tiago e João.
Na altura, o escultor procurava afastar-se das influências de Butler, e começou a fazer as primeiras figuras articuladas, que datam de 1964, progredindo então num caminho mais pessoal, que iria caracterizar o seu trabalho futuro.
Ainda no Reino Unido, foi escolhido para a I Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, em 1957, e expôs duas vezes na galeria ‘Young Contemporaries’, na capital britânica (1957 e 1959).
O início do uso de máquinas elétricas, no corte da pedra – que viria a mostrar-se decisivo para problemas futuros do foro respiratório -, remonta a 1966. A técnica permitiu-lhe dedicar-se em particular ao mármore, dando forma, além das figuras, a paisagens, caixas, flores e as árvores.
Ao longo da década de 1960, o escultor fez diversas exposições em Lisboa e no Porto. Regressou a Portugal em 1970, fixando-se primeiro em Lagos, no Algarve, onde permaneceu por mais quinze anos, e depois em Évora.
No atelier da cidade algarvia, empenhou-se na construção das primeiras figuras bífidas. Daí saiu a polémica obra “D. Sebastião”, erguida na cidade de Lagos, na praça Gil Eanes, dividindo as opiniões, desde as críticas ferozes ao seu “capacete integral”, aos rasgados elogios pela nova sintaxe impressa na escultura portuguesa.
Avesso ao academismo, sobretudo à expressão da escultura do Estado Novo, Cutileiro declarou, na altura, que tinha abandonado a criação artística para se tornar “um fazedor de objetos decorativos destinados à burguesia intelectual do ocidente”.
Em 1976, as suas esculturas e mosaicos foram expostos na Alemanha, em Inglaterra, no Brasil e em Portugal, entre outras exposições.
Em 1980, a sua obra voltaria à Alemanha (Munique e Wuppertal), tendo exposto também nos Estados Unidos, em Washington e Nova Iorque.
As exposições, coletivas e individuais, da Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, a Dortmund, na Alemanha, multiplicaram-se, consagrando o seu nome, em Portugal e além-fronteiras.
A mudança para Évora
Em 1985, João Cutileiro mudou-se para Évora, onde se fixou, e onde deixou exposta, na sua própria casa, boa parte de uma obra multifacetada, em que também trabalhou materiais como o cimento fundido, o bronze, o ferro soldado, o gesso, além do mármore, muitas vezes corroído com ácido.
Alguns anos antes, em 1981, na cidade alentejana promoveu, com o Ar.Co – Centro de Arte e Comunicação Visual, o I Simpósio Internacional de Escultura em Pedra, reunindo um grupo de escultores e um grupo de jovens escultores portugueses.
Em 2018, o Centro Internacional de Arte José de Guimarães mostrou a ‘Constelação Cutileiro’, que mostrou o impacto do escultor na arte contemporânea portuguesa, através de artistas como Charrua, Joaquim Bravo, Álvaro Lapa, António Palolo, Manuel Rosa, José Pedro Croft.
“João Cutileiro abriu um modo novo de encarar a prática escultórica em Portugal, baseada numa abordagem performativa, iminentemente ‘matérica’, oscilando entre forma e informe, remetendo para motivos ou arquétipos da história ou da pré-história da escultura, num diálogo entre épocas e geografias diversas”, lia-se no catálogo. João Cutileiro foi condecorado como Oficial da Ordem de Sant’Iago da Espada, em 1983. Receberia ainda o doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Évora e da Universidade Nova de Lisboa.
Quando da atribuição da Medalha de Mérito Cultural, o Ministério da Cultura destacou o escultor como, “indiscutivelmente, um dos mais singulares artistas portugueses do século XX”: “Excessivo, festivo, generoso, o seu trabalho marcou decisivamente a paisagem artística e cultural em Portugal a partir do final dos anos 1950 e início dos anos 1960”.
Dos vários temas desenvolvidos por Cutileiro, o dos corpos femininos foi um dos mais marcantes.
Em 1990, a Fundação Calouste Gulbenkian dedicou-lhe uma exposição antológica, e, desde então, sucederam-se várias mostras individuais, em Portugal e no estrangeiro, desde Bruxelas, Luxemburgo, Almansil, Évora, Lisboa, Guimarães e Lagos.
João Cutileiro era irmão do diplomata e escritor José Cutileiro, que morreu em maio de 2020, aos 86 anos.