O seu nome é Herman José von Krippahl. Nasceu em 1954, em Lisboa, filho de pai alemão e mãe portuguesa. É humorista, ator e apresentador de televisão. Alcançou os primeiros sucessos artísticos na década de 70, com as participações na rábula televisiva Senhor Feliz e Senhor Contente. Ao longo de décadas inspirou toda uma geração de artistas, nomeadamente humoristas, com a qualidade do seu trabalho. Hoje, depois de quase 40 anos de trabalho, tem o seu programa de televisão, na RTP, faz espetáculos de humor e música ao vivo, em Portugal e no estrangeiro, e sente que ainda tem “tudo por fazer”.
Não. Já dei a intenção aos meus advogados de ficar com as duas nacionalidades. Da nacionalidade alemã não prescindo. Devo demais ao Estado alemão para prescindir da nacionalidade. Devo a educação, dos 4 aos 20 anos na Escola Alemã, e devo a saúde do meu pai no 25 de abril. Os nossos bens tiveram a proteção do Estado alemão para não sermos espoliados, portanto há uma história com o Estado alemão que de repente não se deita fora. E depois devo uma quantidade de coisas a Portugal, sobretudo à qualidade das pessoas, mais do que o próprio país. O país não se recomenda, conforme os emigrantes muito bem sabem, por isso é que saíram.
Em 1973, fui chamado à PIDE, porque ou ia à guerra de África ou tinha que ser expulso do país. Naturalizei-me alemão nessa altura – tinha de optar por uma nacionalidade –, precisamente porque não queria ir para a guerra de África.
Agora gostava de ter as duas nacionalidades, isso gostava. Mas se tivesse de optar só por uma, depois do susto que apanhei em Portugal, acho que optava por ser alemão. Porque acho que Portugal não é ainda uma democracia plena. Portugal não protege suficientemente os seus cidadãos. É o que eu sinto. E essa sensação ainda não a perdi. Espero que as gerações dos mais novos não nasçam no país com esta sensação.
O passaporte alemão alguma vez o colocou numa posição estranha nalguma deslocação para um espetáculo nas comunidades?
Muitas vezes. Não se esqueça que o espaço Shengen é uma coisa recente. Quando viajava, em certos países, os meus músicos iam todos ser revistados para a sala ao lado e eu ficava numa cadeira à espera que eles saíssem. Eu era o único “cidadão de primeira”, e depois comigo ia um grupo de pessoas que eram revistadas e tinham que provar que tinham bilhete de ida e volta, porque se não nem sequer entravam. Foram anos demais nisto. Só há muito pouco tempo é que Portugal consegue ter um estatuto mais condizente com a sua condição de país europeu.
Que recordações guarda dos espetáculos lá fora?
São vários. Depende das épocas. Os primeiros que eu fiz, as recordações não eram grande coisa. Nos anos 80, as comunicações eram mais lentas. Quando eu comecei a fazer espectáculos, era mais a altura do Raul Solnado, do Marco Paulo ou do José Cid. Não sentia aquilo que sinto hoje em dia. Hoje, quando chego aos sítios, sinto que abarco todas as gerações.
No outro dia em Londres aconteceu-me uma coisa giríssima. Estava a dar autógrafos a um grupo de senhoras de 80 anos. E o segurança, que era inglês, perguntou-me “que tipo de trabalho é que você faz para suscitar a reacção de pessoas desta idade?” Eu estava a assinar um disco que elas tinham levado de Portugal, que era o “Saca Rolhas”, e então expliquei-lhe que quando elas compraram o disco e foram para Inglaterra, em 1977, elas tinham 40 anos, eram mulheres de 40 anos.
Portanto, o que se passa comigo hoje em dia que me agrada muito é que o velho emigrante dos anos 80 é uma pessoa que me acompanha há muitos anos. Mas os novos também estão a par, através do YouTube e das televisões internacionais. Neste momento estou mesmo na fase ideal, quando chego aos sítios acabo por abarcar as gerações todas do público, e acho que isso é um grande privilégio.
Agora vou ter uma experiência surrealista: eu e os Xutos e Pontapés vamos fazer no mesmo dia um espetáculo, em Zurique. Vai ser muito engraçado ver o que acontece com a mistura de públicos. Se bem que o público emigrante está menos compartimentado do que em Portugal. Cá os públicos estão divididos em vários gostos. A partir do momento em que a pessoa sai, tudo o que venha do país suscita algum interesse, e há uma tolerância e uma maneira muito mais intensa de ver as coisas.
Como é que os portugueses o recebem no estrangeiro?
Eu gosto imenso de pessoas, e sou educadíssimo para toda a gente, e sou tratado exatamente da mesma maneira. Acho que só não são recebidas com carinho as pessoas que não são igualmente respeitosas e carinhosas quando saem. Sei que há colegas que se armam em vedetas, e esses não podem esperar depois que as pessoas os metam no coração, não é?
Quando vou, vou mesmo para gostar, para me divertir, para estar com as pessoas e para responder o melhor que posso ao carinho que me dão. E ultimamente não tenho tido experiências sequer menos boas, têm sido todas fantásticas, algumas até surpreendentes. Em Toronto atuei num centro de artes lindíssimo, foi talvez dos melhores espetáculos deste ano, porque tinha as pessoas muito bem vestidas, muito bonitas, e foi talvez dos espectáculos mais dignos de que me lembro. E por minha vontade fazia mais, só que, como tenho muita coisa marcada em Portugal também, viajar implica sempre ter mais tempo.
Os portugueses riem-se das mesmas coisas, em Portugal e no estrangeiro?
Eu não faço muito humor político, o humor que eu faço é mais generalista. Acho que o humor generalista é igual em todo o mundo. Ainda ontem estava a ver um grande cómico alemão dos anos 50 e 60, chamado Heinz Erhardt, e o tipo de humor e de piadas dele estão completamente atuais. Porque não falam de coisas demasiadamente específicas, e eu faço um bocadinho essa destrinça. Nos programas de televisão comento e brinco muito com a atualidade. Nos programas ao vivo, o meu humor é muito generalista e acaba por ser igual cá como lá.
Quais são os próximos espetáculos que tem agendados para as comunidades?
Tenho a 9 de Junho, em Zurique, com os Xutos e Pontapés. Tenho em Macau, em Novembro. E tenho mais 3 ou 4 que estão neste momento a ser negociados para este ano ainda. O grande drama é conseguirmos encaixar as datas, porque eu tenho uma agenda muito carregada até ao fim do ano.
Em que está a trabalhar neste momento?
Tenho o programa (ndr: ‘Herman 2012’, na RTP) e os espetáculos. Sou muito variado no meu trabalho. Como trabalho em muitas frentes, acabo por ter sempre uma agenda muito preenchida.
Depois de quase 40 anos de carreira, de que se alimenta o artista? E de que se alimenta o homem?
Não sinto o passado. Falta-me tudo. Estou a acabar umas obras numa casa que fiz para uns amigos ao lado, preciso de trocar de jipe para os espetáculos, tenho coisas para fazer, tenho sonhos para cumprir, é como se estivesse a começar agora, é estranhíssimo. Não me lembro de ter parado para pensar, “ah, isto agora está tudo tão bem, vou-me sentar em cima dos louros e descansar um bocadinho”. Sinto que tenho tudo por fazer ainda. Descanso com uma qualidade com que raras pessoas descansam.
Muitas vezes acabo por reinvestir aquilo que vou ganhar lá fora na maneira como utilizo a viagem, ou nos sítios em que fico, ou nos passeios que faço. Tenho uma vida de grande qualidade. Trabalho para ter grande qualidade de vida. Não morro de amores por dinheiro. Morro de amores por conforto. Quem me tira bons hotéis, viagens confortáveis e qualidade de vida tira-me tudo. Acho que sem isso não vale a pena trabalhar tanto. Então tinha um apartamento normal, tinha uma mantazinha e estava a ver televisão e não me chateava, e tinha um depósito a prazo com uns grandes juros.
Como avalia a qualidade do seu trabalho? À posteriori, pelas audiências, pelos risos ou aplausos do público, ou sente, à priori, pela experiência que já tem, se o material é bom ou mau?
Todos os dias são diferentes. Há dias gloriosos. Agora acabei de gravar um momento de humor de que não gostei especialmente. O texto era frágil, tentámos fazer o que pudemos. Sou muito pragmático, não conseguimos fazer melhor. Há uns dias fizemos o quadro do Malhoa, ficou genial, foi das melhores coisas que fiz. Com os espetáculos é igual. O último espetáculo que fiz, em Palmela, foi absolutamente delicioso. Mas de repente sou capaz de me lembrar de espetáculos menos confortáveis, onde estava muito vento ou estava mau sol, que não correram como gostaria. Como tudo na natureza, nada é constante na nossa profissão.
Como lida com os altos e baixos do trabalho artístico?
Lido muito bem, porque tenho a felicidade de não ter fé. Para mim tudo o que acontece é normal. As pessoas que têm fé, coitadas, sofrem duplamente. Quando as coisas correm mal acham ainda por cima que estão a ser castigadas e que não foram ouvidas. E então têm dois sofrimentos. Eu não tenho nenhum sofrimento, porque como acredito que estar aqui é só um jogo de sorte e azar, quando as coisas correm muito mal não sofro nada, porque sei que eventualmente as coisas vão correr bem.
Disse em entrevista que está “sempre a viver o presente e a preparar o futuro”. Incomoda-o se o questionarem sobre os êxitos passados e passarem ao lado dos trabalhos presentes ou projetos futuros? Se o tratarem como alguém que um dia foi grande?
Não me incomoda nada. Eu adoro o passado. Olho para o passado como uma sala decorada, em que vamos olhando para as recordações e vamos vendo aquelas mesas cheias de fotografias, “olha que bonito estas férias que passei ali, olha que novos que eram os meus avós ali”. O passado não serve de nada, só serve para contemplar.
Adorava ter 30 anos, e adorava que os meus avós estivessem vivos, e adorava que Portugal voltasse aos anos 90, onde todos pensávamos que íamos ser ricos. Só que, como é passado, não vale a pena mastigá-lo. Se me perguntar se eu fazia alguma coisa diferente daquilo que fiz, respondia-lhe: milhões de coisas. Fazia uma lista telefónica de coisas que fazia diferentes. Negócios que não teria feito, colegas que não teria contratado, coisas que não tinha aceite, milhares de coisas.
Acha que existe uma “geração Herman” na comédia nacional atual? Sente esse reconhecimento por parte das pessoas?
Uma coisa tenho a certeza, porque eles todos confessam isso: a maior parte deles começou porque me via. O Ricardo Araújo Pereira diz às vezes que tomou a decisão de que queria ser humorista enquanto espetador do Tal Canal, em pequenino. Isso orgulha-me imenso. Acho que os meus grandes concorrentes hoje em dia são pessoas que nasceram por minha culpa, o que me deixa divertido. Mas não descansado, porque eu sou um animal de concorrência. Somos todos concorrentes. O fato de eles serem novos e cheios de energia só me espicaça ainda mais.
Há uns anos perguntaram-lhe se gostava de voltar a ter um talk-show, e você respondeu: “só faria sentido numa lógica de serviço público, mas isso só é possível num canal que não se preocupe com as audiências”. É isso que tem agora na RTP?
É. E cada vez isso é mais verdade. Se você quer dar tempo de antena a um criador, a alguém que venha tocar música ou venha fazer qualquer coisa, isso não pode competir com uma telenovela. Tem de ser mesmo o canal de serviço público a assumir essa vertente.
Está já há cerca de 3 anos na RTP. Imagino que o canal esteja contente com o seu trabalho.
Não me lembro de não ter estado na RTP. Sem querer ferir ninguém nem criticar ninguém, é como se do ano 2000 ao ano 2008 não tivesse havido nada. É uma coisa impressionante, tal foi a dureza da passagem pela SIC. Tive momentos ótimos e divertidos e tudo isso, mas foi mesmo só remar contra a maré. Digamos que eu quis fazer a experiência, fui atrás do entusiasmo do Emídio Rangel, mas é daquelas coisas que eu não repetiria, se voltasse atrás.
E está satisfeito com o seu trabalho na televisão?
Absolutamente. Mas, conforme digo, se pudesse voltar atrás jamais teria saído da RTP. Teria continuado a fazer o meu trabalho.
O Nuno Artur Silva disse um dia que “o Herman Enciclopédia (ndr: RTP, 1997) surge numa época de abertura, depois de um fechamento que coincide com o cavaquismo”, e que “o programa beneficiou de total liberdade, depois da tentativa de censura do sketch da Última Ceia, no Parabéns”.
Acha que os contextos sociopolíticos, em termos do material que podem providenciar, têm influência na qualidade do humor que se faz? Ou isso é uma desculpa fácil para quem não tem talento, nomeadamente ao nível do humor?
Repare que nessa altura não havia concorrência. Se houvesse concorrência, nada teria acontecido, o meu programa não teria sido suspenso, portanto isso nem sequer era assunto. Na altura havia um único canal, tutelado pelo Governo, e a maior ou menor liberdade dependia da tutela do Governo. A partir do momento em que há concorrência, é o mercado que regula isso.
Sobre os contextos, depende. Porque há figuras ótimas, que dão imensa vontade de rir, e figuras caricatas, que nem merecem ser caricaturadas. Eu diria que os políticos hão-de ser sempre um tema maravilhoso para fazer piadas, mas é a maneira mais fácil. A maneira mais difícil é fazer aquilo que eu tento fazer hoje em dia nos espetáculos ao vivo, que são duas horas de espectáculo em que não preciso sequer de tomar posição política em relação a ninguém. O espectáculo pode ser visto por gente de esquerda, gente de direita, novos e velhos, isso é que é difícil. Porque é muito fácil pegar em qualquer coisa que aconteceu ontem e fazer uma piada. É a coisa mais primária que se pode fazer no humor: pegar no engano do político de ontem e fazer uma piada sobre isso, e toda a gente ri porque foi ontem. Agora, conseguir fazer rir, a 3 mil quilómetros de distância, sem falar nesse pequenino acontecimento que nem sequer chegou lá fora, isso é que é mais complicado.
É bom o nível médio do humor que se faz em Portugal?
Não é nada mau. Curiosamente, acho que há já uma coleção grande de profissionais na área do humor, e todos eles a trabalhar muito, o que é giro. Acho que se criou uma pequena indústria de humoristas em Portugal, o que é muito interessante. Antigamente era mais teatro, revistas e comédias, e agora ganhou-se um bocado a prática do stand up e do humorista que enche salas. Há gente ótima a fazer espetáculo.
Que humoristas ou artistas tem hoje como referência? E quais dos seus atuais concorrentes humoristas em Portugal faz questão de acompanhar mais de perto?
A maior parte são veteranos americanos. Se me perguntar se há alguém que me faça rir em Portugal: não. Em Portugal, o único que me faz rir um bocadinho sou eu, e mesmo assim não é muito, é só um bocadinho.
Que opinião tem da situação política em Portugal?
Não acompanho a facilidade em imputar a responsabilidade nos outros. Acho que todos fomos culpados, e habituámo-nos a ser extraordinariamente preguiçosos. Num jornal com o título do vosso, é interessante perceber que, durante muitos anos, quem queria trabalhar mesmo saía do país, porque dava a sensação de que trabalhar cá não compensa muito. Ainda agora estive no sul da Alemanha, e todos os portugueses são trabalhadores esforçadíssimos e conceituados. Todos sem exceção. Portanto, eu acho que a preguiça é um vício do próprio país, uma certa incompetência, não respeitar horários, a lei do menor esforço.
É muito fácil dizer que foi quem nos governa. Eu acho que não, acho que é um drama muito mais profundo. Depois podes explicar razões: não fomos arrasados na Segunda Guerra Mundial, não tivemos guerra civil, como em Espanha, estamos há muito tempo habituados a que não se passe nada.
A nossa Revolução não foi Revolução. Mudaram-se meia dúzia de coisas, mataram-se duas ou três pessoas, mas o poder judicial ficou, por exemplo. Nunca ninguém fala nisso. Queixam-se muito da justiça. Nada mudou. Imensas coisas não mudaram. Mesmo assim, muito bons governantes tivemos nós.
Acha que quando o português sai se transfigura?
O português que quer ser útil e que não tem medo de trabalhar sai, já percebeu que cá não acontece nada. Eu, se tivesse uma profissão técnica, cozinheiro ou carpinteiro ou serralheiro, qualquer coisa útil e bem feita, obviamente não estava aqui nem cinco segundos. Eu tenho de ficar, porque é a minha arte, mas o país é muito preguiçoso.
José Pedro Duarte
JPedro@mundoportugues.org
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