Manuel Gonçalves, descendente de uma família de antigos baleeiros da ilha do Pico, iniciou-se há 24 anos na gravação de dentes de baleia (scrimshaw), uma arte que já chegou às mãos de Papas e Presidentes da República. Além do Brasão dos Açores gravado num dente de baleia, que está exposto na museu da Fundação Mário Soares, Manuel Gonçalves criou a réplica da uma caravela portuguesa, a pedido da Diocese de Angra e Ilhas dos Açores, para oferecer a João Paulo II, aquando da sua visita ao arquipélago, em Maio de 1991.
O artesanato em osso de baleia é considerado um dos símbolos dos Açores e constitui uma das últimas heranças da caça à baleia, uma actividade que foi vital para a economia de várias ilhas, durante séculos.
“Tenho peças espalhadas um pouco por todo o mundo”, assegurou o artesão autodidacta à agência Lusa, alegando que os seus trabalhos são feitos de acordo com as técnicas antigas do scrimshaw (gravura e escultura em dente e osso de baleia).
Esta forma de artesanato, que terá nascido a bordo dos barcos baleeiros da Nova Inglaterra como forma de ocupar o tempo dos tripulantes mais habilidosos durante os momentos de lazer, utiliza as únicas partes da baleia que não eram aproveitadas pela indústria – os dentes e os ossos.
Segundo explicou Manuel Gonçalves, depois de polido o dente ou osso, é feito o desenho pretendido com o auxílio de estiletes ou navalhas, aplicando em seguida tinta-da-china para preencher os rasgos feitos na peça.
Além das encomendas das entidades oficiais, cria peças para vender, a quem passa pela sua casa nas Lajes do Pico, e para levar às feiras de artesanato, em que participa ao longo do ano.
Apesar da captura de baleias nos Açores ter terminado no final da década de oitenta, Manuel Gonçalves assegurou que “há ainda muita gente que tem dentes de baleia guardados em casa”, pelo que considera que esta “arte não está condenada” a terminar num curto espaço de tempo.
“Há muita matéria-prima guardada quer nos Açores, quer no Continente”, afirmou o artesão de 60 anos, acrescentando que o Museu dos Baleeiros, na ilha do Pico, adquiriu recentemente, em Lisboa, 150 quilos de dentes de baleia em estado bruto a uma única pessoa, cujo pai tinha vivido nos Açores e que se dedicou à caça da baleia.
Para Manuel Gonçalves, conforme os proprietários vão perdendo a ligação com os seus antepassados, desfazem-se dos “antigos troféus dos baleeiros”, sendo que o preço de venda pode atingir mais de 750 euros por quilo, consoante a qualidade e estado de conservação.
O processo rudimentar e de elevado grau de risco da caça à baleia nas ilhas consta de várias obras de escritores açorianos, como Vitorino Nemésio ou Dias de Melo, sendo os dentes e ossos guardados pelos descendentes o “testemunho material” dessa época.
Embora saliente ter um stock de matéria-prima que dá para trabalhar até morrer e ainda deixar de herança à família, Manuel Gonçalves disse que já comprou mais de mil quilos de dentes e ossos de baleia em várias zonas do país, por se tratar de bom material.
As baleias vivem, em média, cerca de 80 anos e, por se alimentarem de moluscos, têm normalmente entre 36 a 46 dentes consoante a idade, mas apenas no maxilar inferior, indicou.
Sublinhando que nunca se caçou baleias no arquipélago por causa dos dentes, Manuel Gonçalves adiantou que a produção de grandes peças artesanais na região tem diminuído, “não só para poupar matéria-prima como também devido aos elevados preços de venda”.
“A maioria dos artesões opta hoje em dia por fazer miniaturas, como berloques e brincos”, disse Manuel Gonçalves, acrescentando que a peça mais barata que tem para venda custa três euros e a mais cara, um dente de baleia trabalhado, cerca de sete mil euros.
Nos Açores, estão inscritos no Centro Regional de Apoio ao Artesanato apenas oito artesãos (três em São Miguel e cinco no Pico) dedicados à arte de trabalhar o osso, chifre e similares.
Além do Museu dos Baleeiros, instalado em três antigas casas de botes (barcos utilizados na caça à baleia nos Açores) nas Lajes do Pico, é possível observar uma grande colecção de gravuras em dentes de baleia no Museu de Scrimshaw do “Café Peters”, na ilha do Faial.
Trata-se de uma valência, criada em 1986, que testemunha e conserva a memória da caça à baleia no arquipélago, através da exposição de mais de mil peças, de vários artistas, que foram sendo recolhidas sobretudo a partir da década de 60.
“O meu pai (José Azevedo) apercebeu-se que a caça à baleia ia terminar, pois era uma vida dura e arriscada, e lembrou-se de começar a recolher o artesanato feito a partir dos ossos e dentes de marfim das baleias”, afirmou à Lusa José Henriques Azevedo, o actual proprietário do café mais emblemático da região.
Embora seja difícil avaliar com exactidão o preço de cada peça exposta, José Henriques Azevedo estima que cada uma custe entre três a cinco mil euros, dada a qualidade do desenho e antiguidade.
“Os turistas continentais e estrangeiros que visitam a cidade da Horta passam, normalmente, pelo museu”, assegurou o responsável, acrescentando que o espaço, localizado no primeiro andar do café, está aberto de segunda a sábado, com um custo de entrada de um euro e meio.
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