A primeira sala de consumo vigiado de drogas do país registou, em seis meses, 862 utentes, o triplo do estimado, e já conseguiu “imprimir alguma mudança” na vida de quem a frequenta e do bairro de Lisboa onde funciona.
“Estes números têm vindo a ser surpreendentes para nós porque inicialmente tínhamos feito um diagnóstico desta zona, e imaginávamos que poderiam circular aqui neste bairro cerca de 300 consumidores e que iríamos ao fim do ano [de projeto piloto da sala de consumo vigiado] ter contacto com esses 300 consumidores”, diz à Lusa Elsa Belo, diretora técnica da Ares do Pinhal, associação dedicada à recuperação de toxicodependentes e gestora do espaço, instalado na zona do Vale de Alcântara, nas imediações do antigo Casal Ventoso.
A sala de consumo, vulgarmente conhecida como “sala de chuto” teve autorização do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) para abrir em março e começou a receber consumidores de drogas em 18 de maio, após um período de adaptação do edifício e de um trabalho junto dos toxicodependentes na zona e dos residentes no bairro, “para que pudessem entrar e conhecer o espaço e saber a que é que se destina”, segundo Elsa Belo.
Este foi “um compromisso” assumido entre a Câmara Municipal de Lisboa e a Ares do Pinhal: “Nunca prejudicar a comunidade com este espaço, não pode acontecer”, antes pelo contrário.
“A comunidade já estava prejudicada por ter de conviver com o consumo destas pessoas à sua porta. A abertura deste espaço vem justamente retirar o consumo da rua, retirar de perto das famílias, de crianças que vão para a escola, dos idosos que vão até ao centro de saúde ou que vão às compras”, sublinha.
Há utentes encaminhados para a sala pelos residentes, o banco de roupa para oferta enche-se com doações do bairro, a padaria vizinha entrega ali o excedente de pão para ser distribuído pelos utentes, chegam à equipa chamadas de vizinhos a pedir a recolha de seringas abandonadas no parque infantil.
“Há toda esta ligação à comunidade que revela que há alguma gratidão em relação ao trabalho que estamos aqui a fazer”, acredita Elsa Belo.
“Neste momento conseguimos perceber que de facto é muito pertinente a nossa presença cá”, prossegue, num balanço destes seis meses.
Além do envolvimento e da receção dos residentes no bairro, Elsa Belo sublinha o impacto do projeto com as 862 pessoas inscritas até hoje, sendo que 200 frequentam diariamente o espaço.
Vão ali para fazer consumo de drogas (fumado ou injetado) sob vigilância de enfermeiros e psicólogos, que lhes fornecem material esterilizado e os socorrem em caso de ‘overdose’ ou de outra necessidade.
Mas vão também para usar outros serviços, como tratamentos e rastreios médicos, serviços de enfermagem, higiene pessoal, refeições ou, simplesmente, alguma socialização no “Café Conforto”, para onde dá a porta da rua, com uma sala com televisão e jogos de tabuleiro.
“Também temos a equipa comunitária que faz uma saída todos os dias, que percorre todo o bairro com o objetivo de recolher todo o material de consumo que é abandonado, tentando assim devolver ao bairro alguma salubridade, não deixar dentro do bairro os resíduos do consumo”, acrescenta Elsa Belo, que reforça que “o consumo vigiado é apenas uma das valências deste espaço”.
“O que nós queremos é que esta seja uma medida que vá muito para além do ato de consumo e do acompanhamento do ato de consumo, mas que consiga imprimir alguma mudança na vida das pessoas, mudança em relação aos hábitos de saúde, mas também mudança ao nível do seu futuro. Se for possível que estas pessoas tenham algum suporte para se ligar, por exemplo, a centros de tratamento, então esse é o nosso desejo”, diz a representante, que assegura que nestes seis meses foram já encaminhadas vários utentes para serviços como albergues ou comunidades terapêuticas.
Isto apesar das limitações de uma equipa de 19 pessoas, entre enfermeiros e técnicos de acompanhamento psicossocial, que foi desenhada para responder a 300 utentes, não a quase 900.
A expectativa de 300 utentes baseava-se num “diagnóstico feito há sensivelmente três anos” e “há três anos, de facto, a presença de utilizadores neste contexto não era um número tão elevado”, diz Elsa Belo, considerando haver um impacto da pandemia, que “veio devolver a este território muitas situações que já estavam fora dele”.
Em causa, sublinha, está uma “franja da população” que, numa crise, é das primeiras “a ser excluída” porque “tem empregos sem proteção social”, ligados à restauração, aos táxis ou “aos ubers”. À perda de trabalho, seguem-se as recaídas no consumo.
“Aliás, como puderam ver, as pessoas ainda estão, algumas, bastante conservadas [fisicamente]”, vinca, antes de acrescentar que o objetivo neste momento é “devolver estas pessoas à sociedade, à autonomia laboral e também aos processos de tratamento ou de paragens de consumos”.
A análise coincide com a do enfermeiro Paulo Marques, coordenador da área da saúde da sala de consumo vigiado e que há mais de 20 anos trabalha em projetos relacionados com a toxicodependência em Lisboa.
Paulo Marques trata hoje, no gabinete de enfermagem da sala de consumo, feridas e úlceras “que já não via deste o Casal Ventoso” e assegura que, “comparativamente há 20 anos, há muito menos pessoas a injetar”, mas “garantidamente que hoje há mais gente a injetar do que há cinco anos”, numa tendência que também atribui ao impacto da pandemia e que reflete o que sempre acontece “quando há uma crise económica”.
A avaliação resulta também “do número de consumos” nas salas vigiadas (com a parte para fumadores “sempre cheia” e a de endovenosos cada vez mais solicitada) e do número de seringas que a equipa de rua recolhe diariamente nas imediações: numa saída recente que Paulo Marques acompanhou, recolheram 178 em pouco mais de meia hora.
Após seis meses de funcionamento, quem trabalha na sala de consumo vigiado não tem dúvidas de que será “muito fácil” justificar a continuidade do projeto para além do primeiro ano da fase experimental junto do SICAD, da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo e do município.
Além dos resultados junto de perto de mil utentes e da comunidade do bairro, os efeitos estendem-se a toda a cidade, ao Serviço Nacional de Saúde, à despesa pública do país, assegura Elsa Belo: “Basta evitarmos um HIV por ano já e paga o programa todo do ano. Essa relação do custo-benefício é gritante neste programa e, portanto, vai ser muito fácil provar que vale a pena estarmos cá”.