A vontade de reacender em Portugal o interesse pela língua e cultura francesas é um dos grandes desafios assumidos pela comissária portuguesa da Temporada Cruzada França-Portugal 2022, que conta com 200 projetos, a maioria na área das artes plásticas.
Concebida para aproximar os dois países, através de uma programação vasta, que vai das artes à ciência, passando pela igualdade de género, a Temporada Cruzada França-Portugal contará com projetos científicos resultantes da colaboração entre universidades e laboratórios, mas também projetos artísticos que cruzam, entre os dois países, temporadas de teatro ou de festivais de música, ou outras áreas como a gastronomia, disse em entrevista à Lusa a comissária, Manuela Júdice.
Os convites para cruzar temporadas partem normalmente do presidente francês, que convida um país para cruzar programas em áreas que sejam de interesse comum, e depois os programas são construídos em conjunto.
Sendo uma operação eminentemente política, surge normalmente de uma “oportunidade”, que, neste caso, seria o intervalo de tempo entre a presidência portuguesa da União Europeia e a francesa, mas a pandemia veio atrasar o processo e a temporada vai arrancar a 12 de fevereiro, em França, e a 16 de fevereiro em Portugal, já durante o período em que estará em curso a presidência francesa.
“Foram definidos eixos de trabalho que se desenvolvem na área científica, na área dos oceanos, na área da igualdade de género, na área da juventude, há um grande interesse pelas línguas e um trabalho sério à volta das línguas portuguesa e francesa. Acontece também que, como em França as temporadas já se fazem há 30 anos, há muita apetência por parte das instituições púbicas e privadas francesas, nos programas de uma temporada”.
Em Portugal, a experiência é completamente nova, pelo que, “enquanto em França nos pedem dezenas de participações, aqui em Portugal é muito desigual, isto é, temos muito menos pedidos por puro desconhecimento”.
Assumidamente francófila, e integrada numa família em que o francês tem sido a segunda língua ao longo de gerações – desde os seus avós até aos seus netos -, Manuela Júdice confessa que foi com “prazer” que aceitou o convite para comissariar a temporada e, assim, trabalhar com França e com a língua francesa.
Este é, de resto, um dos grandes desafios que tem pela frente: tentar suscitar de novo em Portugal o interesse pela cultura e língua francesas, que se tem vindo a perder nos últimos anos.
Manuela Júdice lamenta que na sua vida quotidiana só ouça falar em França ou porque alguém se casa e vai passar a lua-de-mel a Paris, e tirar fotos ao pé da Torre Eiffel e do Arco do Triunfo, ou porque há família ligada à emigração.
“Tirando isto, é preciso ir para o meio intelectual para encontrar pessoas que veem em França outros interesses, porque o senso comum é isto, é ir a Paris. Este quebrar de mau hábito, quebrar este estigma tem sido difícil, mas é um objetivo e é para mim, e para minha colega francesa, prioritário”, afirmou.
“Não queremos ficar, de maneira nenhuma, ligados a imagens do passado: o francês é uma língua complicada, o inglês é uma língua muito mais fácil, o francês está ultrapassado, agora a moda é americana, já não é a moda [do] francês. As coisas deste género, queremos que elas sejam mitigadas e que passemos a ter uma imagem do país França diferente aqui em Portugal, e uma imagem de Portugal diferente em França”.
Daí também a grande aposta no trabalho científico, no cruzamento de projetos da área da ciência, do espaço, dos oceanos, da biodiversidade, muito trabalho também na área do teatro, da música, da arte urbana.
“Passamos para coisas que já não são aquelas áreas tradicionais de colaboração entre dois países, queremos avançar muito com a juventude, porque ou se ganha a juventude ou não se ganha esta temporada”.
Apesar de, do lado francês, também haver “ideias feitas erradas” em relação a Portugal, a verdade é que os “franceses têm melhorado muito a sua ideia” em relação a este país e “estão a caminhar num sentido de que, neste momento, o português em França já não é só o operário que foi para lá ganhar a vida”.
Esta mudança de mentalidade deve-se, por um lado, às novas gerações de origem portuguesa que, em França, cada vez mais ocupam cargos altamente qualificados, e por outro, ao facto de Portugal “estar na moda” e ser muito mais conhecido dos franceses, no geral.
Um aspeto em que, segundo Manuela Júdice, Portugal dá cartas, quando comparado com França, é a forma como trata as questões da paridade e da igualdade de género, e com as quais os franceses têm muito a aprender.
“Queremos muito também trabalhar a área da paridade, que é uma área em que sentimos que os franceses acham que nós estamos, e estamos de facto, muito mais avançados do que eles em termos de legislação, em termos de prática, é uma área consolidada em Portugal, a área da igualdade de género. Não estou a dizer que não haja muito a fazer ainda, mas é uma área que está mais consolidada em Portugal do que em França, e que eles gostariam muito que esta temporada os elevasse e que conseguíssemos fazer um trabalho daqui para o futuro ao mesmo nível uns dos outros”, revelou a comissária.
Quanto aos projetos já validados para a programação, a grande maioria é da área das artes plásticas e são projetos sobretudo com origem em França, que se propõem a acolher trabalhos portugueses.
A razão é simples, “os museus, galerias, espaços de exposição, feiras de arte já se habituaram à existência de temporadas, já estão à espera de saber qual é o país, para que ano, e prepararam-se estudam o país, veem o que é que lhes pode interessar desse país e quando se abrem as candidaturas de uma temporada, começam a aparecer os projetos”, explicou.
Outras áreas em que há também já muito projetos aprovados são as da música clássica e das artes cénicas.
Segundo a responsável, o Teatro Municipal do Porto, o Teatro Nacional São João e o Teatro Nacional D. Maria II vão acolher temporadas francesas.
“Vai haver uma programação consistente de teatro francês nestes três teatros ao longo do ano 2022, e nós teremos também, do lado português, uma temporada repleta de teatro português em França”.
O mesmo vai acontecer com festivais de música ou com festivais como o Iminente, em que vai haver uma participação tanto cá como lá, ou como o festival Europavox, em França, que “tem manifesto interesse em ter uma programação portuguesa muito forte”.
“A bienal de Arte de Coimbra vai ter um comissariado bicéfalo, com duas comissárias mulheres, uma francesa e uma portuguesa, mas a lista dos artistas que vai entrar ainda não pode ser posta em cima da mesa, porque ainda está a ser trabalhada”.
No geral, Manuela Júdice escusou-se a entrar em detalhes da programação, alegando não querer antecipar-se a “um anúncio oficial da temporada”, que está para breve, e também porque há muitos nomes que não estão ainda completamente fechados.
A gastronomia também marcará forte presença na temporada, “com projetos muito interessantes” que envolvem todo o tipo de cozinha: ‘street food, cozinha de autor, cozinha tradicional, participação de ‘chefs’, mas também de jovens de escolas profissionais.
Relativamente aos projetos científicos, em que já há uma colaboração entre instituições, Manuela Júdice destacou que um dos elementos de união entre os dois países é o facto de serem os únicos europeus que têm um Ministério do Mar, pelo que “os projetos também apareceram” nas áreas “da economia azul, da biodiversidade, que têm grande interesse nos dois países”.
Sendo França um país muito maior e com mais experiência, a maioria dos projetos é francesa, mas há muitos projetos cruzados (que vão acontecer em simultâneo ou de seguida em Portugal e em França), explicou a comissária.
“Entre os projetos cruzados e os projetos a realizar em Portugal, podemos dizer que nos aproximamos do número de projetos franceses, sozinhos”, disse, confessando que comissariar a temporada dá “muito trabalho”, mas também “muito gozo” e “prazer, fazer as pontes e pôr as pessoas em contacto”.
O pôr em prática a decisão em Portugal, foi feito no papel sem conhecimento no terreno, ou seja, enquanto os franceses têm uma equipa a trabalhar há 30 anos, e que só para os arranjos tem entre 15 e 20 pessoas, a conceção da temporada cruzada em Portugal previa duas pessoas e depois uns pontos focais nos vários ministérios, nas varias áreas temáticas a trabalhar, mas os pontos focais são funcionários dessas áreas, que têm o seu trabalho próprio, portanto, a temporada era um acréscimo, não lhes estava nas funções, contou.
“Quando cheguei senti uma grande dificuldade de articulação funcional, que teve de ser trabalhada, que está a ser corrigida; temos bons resultados, mas teve de ser acompanhada com um convencer as pessoas de que isto era uma coisa para fazer, importante, e que tinha de ser feita e que tínhamos de cumprir os prazos e tínhamos de nos entregar a esta tarefa”.