O início hoje, do julgamento do presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, no âmbito do caso Selminho, culmina um percurso de 20 anos com várias facetas que afetaram a atividade municipal e a vida política da cidade e que envolveram vários processos judiciais.
O Ministério Público, que acusa Rui Moreira de ter tentado favorecer a Selminho, imobiliária da família, da qual era sócio, defende a perda de mandato do autarca independente, depois de, em 18 de maio deste ano, o Tribunal de Instrução Criminal (TIC) do Porto ter decidido pronunciar (levar a julgamento) Rui Moreira, “nos exatos termos” da acusação do MP que imputa ao arguido o crime de prevaricação.
No centro da polémica está um terreno na escarpa do Douro, vendido por um casal que o registou por usucapião, à imobiliária Selminho, em 2001, e que o tribunal considerou ser propriedade municipal, na sequência de uma outra ação movida pela autarquia em 2017.
Denúncia anónima na origem da investigação
Em julho de 2016, o Departamento de Investigação e Ação Pena (DIAP) do Porto dava conta da instauração de um inquérito, na sequência de uma denúncia anónima sobre a empresa Selminho, da família de Rui Moreira, que detinha, há vários anos, um conflito judicial com a Câmara do Porto, devido a terrenos da escarpa da Arrábida.
A Procuradoria-geral da República confirmou à Lusa “a receção, através da plataforma de denúncias do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, de uma denúncia anónima relacionada com a matéria”, que foi “remetida ao departamento do Ministério Público competente – DIAP do Porto – onde, entretanto, foi instaurado um inquérito”.
Queixa da CDU arquivada em 2017
A CDU apresentou em dezembro de 2016 uma queixa no MP sobre a Selminho, com quem a autarquia fez um acordo extrajudicial, em 2014, comprometendo-se a devolver, no âmbito da revisão do Plano Diretor Municipal (PDM), capacidade construtiva ao terreno na calçada da Arrábida, classificado como escarpa em 2006.
Esta queixa acabou arquivada em julho de 2017, tendo o MP entendido não existir “qualquer sinal de proveito pessoal do autarca ou de terceiros ou de prejuízos patrimoniais para a autarquia”.
No despacho de arquivamento, o MP reconhece, contudo, que o presidente da Câmara do Porto teve “uma intervenção menos avisada ou desatenta” ao fazer-se representar por um advogado com procuração forense numa audiência prévia em tribunal com a Selminho.
De que é acusado Rui Moreira
O MP acusou, em dezembro de 2020, o autarca do Porto de prevaricação por, alegadamente, favorecer a imobiliária da sua família durante o seu mandato, em 2013, em detrimento da autarquia.
Na ocasião, o autarca reagiu e deixou claro que não iria interromper o mandato, considerando a acusação “ultrajante” e “infame” e “uma peça de combate político-partidário”, tendo requerido a abertura de instrução, fase facultativa que visa decidir por um juiz de instrução criminal (JIC) se o processo segue e em que moldes para julgamento.
O que diz o Ministério Público (MP)
No debate instrutório de 29 de abril de 2021, o MP reiterou que Rui Moreira, enquanto presidente do município, agiu em seu benefício e da família, em prejuízo do município, no negócio dos terrenos da Arrábida, cujo conflito judicial opunha há vários anos a câmara à imobiliária Selminho. A empresa da família de Moreira pretendia construir num terreno na escarpa da Arrábida, que o tribunal veio a decretar ser propriedade do município.
Para o procurador Nuno Serdoura, o autarca prevaricou ao assinar, em nome do município, uma procuração forense ao advogado Pedro Neves de Sousa, mandatário do município numa ação judicial que corria termos no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, em que a Selminho, “empresa da família do autarca e dele próprio, demandava a CMP”, violando, assim, os deveres de legalidade e de imparcialidade.
“Pese embora não desconhecesse o litígio entre o município e a Selminho, em total desrespeito pelo Estatuto dos Eleitos Locais”, a acusação diz que Rui Moreira assinou a procuração forense, em 28 de novembro de 2013, pouco mais de um mês após assumir a presidência da autarquia.
Segundo o MP, Rui Moreira ordenou ainda o advogado, que naquela ação representava a câmara, a celebração de compromisso arbitral e de transação judicial onde aquele se obrigava a alterar o Plano Diretor Municipal, de acordo com a pretensão da Selminho, no ano de 2016, ou a indemnizar a empresa, caso tal não se viesse a verificar, e que, “ao fazê-lo, retirava a causa da esfera do tribunal judicial administrativo para a entrega a um tribunal arbitral, sem qualquer fundamento para tal”.
O MP acrescenta que a “atuação criminosa” do autarca não se limita à outorga da procuração forense, “mas continua com a intervenção do arguido num processo judicial em que beneficiou a empresa Selminho, e depois em toda a ocultação desta atuação”.
Além disso, diz, Moreira “usurpou as competências administrativas da Assembleia Municipal, não só vinculando a edilidade a que presidia à alteração do PDM em termos que beneficiavam ilegalmente a Selminho”, mas também dando ordens ao mandatário municipal.
Defesa admite atuação “menos avisada ou desatenta” de Rui Moreira
No Requerimento de Abertura de Instrução (RAI), a defesa de Rui Moreira admitiu que o autarca teve uma atuação “menos avisada ou desatenta”, quando emitiu a procuração forense ao advogado Pedro Neves de Sousa.
Durante a instrução, a defesa pediu que Moreira não fosse julgamento, alegando que o caso Selminho estava assente “num processo de intenções, teorias e fabulações” do Ministério Público (MP).
Para o advogado Tiago Rodrigues Bastos, os autos “são filhos de uma imaginação, de um preconceito e de uma intenção, que não é aceitável”, em alusão ao procurador do MP Nuno Serdoura.
Em maio deste ano, o independente Rui Moreira afastou a hipótese de a decisão do tribunal de o levar a julgamento interferir numa recandidatura à presidência da Câmara do Porto, para a qual acabou por ser reeleito em 26 de setembro deste ano, ainda que não tenha conseguido reeditar a maioria alcançada nas autárquicas de 2017.
Ministério Públiclo arrola duas dezenas de testemunhas, incluindo Azeredo Lopes
Azeredo Lopes, antigo chefe de gabinete do presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, é uma das duas dezenas de testemunhas arroladas pelo MP.
O ex-ministro da Defesa, que antes de integrar o Governo foi chefe de gabinete de Rui Moreira após este tomar posse como presidente do município portuense, em 23 de outubro de 2013, é um dos 20 nomes que constam do rol de testemunhas da acusação do MP.
O que é o crime de prevaricação (de titular de cargo político) e a sua moldura penal
Comete o crime de prevaricação o titular de cargo político quem, conscientemente, conduza ou decida contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de, por essa forma, prejudicar ou beneficiar alguém.
A moldura penal relativa ao crime pelo qual Rui Moreira está acusado e pronunciado vai dos dois aos oito anos de prisão.
O que disseram as forças políticas
Quando em 18 de maio foi conhecida a decisão do Tribunal de Instrução Criminal do Porto de levar Rui Moreira a julgamento, a coordenadora do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, defendeu, numa publicação na rede social Twitter que o autarca não tinha condições para “continuar no cargo”, acrescentando que “Rui Moreira preferiu o negócio à cidade”.
No mesmo dia, o candidato do Partido Popular Monárquico (PPM) à Câmara do Porto afirmou que o caso Selminho é “mais um caso de indícios de corrupção entre políticos em Portugal”, classificando como “vergonhoso” a “impunidade com que o poder se move na justiça”.
Dois dias depois, o secretário-geral adjunto do PS, José Luís Carneiro, reagia, insurgindo-se contra “julgamentos na praça pública” e manifestando o “respeito absoluto” pela presunção da inocência e direito à defesa do presidente da Câmara do Porto.
Na mesma altura, o presidente do PSD, e ex-presidente da Câmara do Porto, Rui Rio, deixou claro que, se estivesse na situação de Rui Moreira, não se recandidataria à câmara, alertando para o “risco” que o autarca corre de ter de “sair pela porta de trás” da autarquia.
À data, o grupo municipal do movimento independente de Rui Moreira reiterou que o acordo feito no mandato do autarca com a Selminho não deu à imobiliária da sua família direitos que já não tivesse.
Selminho foi tema nas autárquicas
O caso Selminho marcou também a campanha eleitoral. No início de setembro, num debate que juntou sete dos 11 candidatos à presidência da Câmara do Porto nas eleições autárquicas de 26 de setembro, o atual presidente da autarquia reiterou nada ter ganhado no caso Selminho. Na ocasião, o autarca sublinhou que foi na sua presidência que o terreno que estava registado em nome da imobiliária voltou a ser propriedade da autarquia.
Pelo PS, o cabeça de lista Tiago Barbosa Ribeiro recusou tratar o caso para o debate político, salientando prezar o princípio da separação de poderes.
Já Vladimiro Feliz, que liderava a candidatura do PSD àquela autarquia, considerou que foi Moreira a trazer o caso Selminho para a esfera pública e política, quando, por um lado, levantou suspeições sobre o momento do anúncio da candidatura do PSD que coincidiu com a pronúncia do Ministério Público.
Pela CDU, Ilda Figueiredo criticou a forma “incorreta” como o autarca procedeu num “caso que interessava à sua família”, mas referiu que neste momento este é um caso de justiça.
Sérgio Aires que encabeçava a lista do Bloco de Esquerda (BE), reiterou a posição que o partido assumiu desde o início, salientando que Moreira “não preservou o interesse público”.
A candidata do PAN Bebiana Cunha considerou que o assunto que suscitou “uma nuvem negra” sobre a gestão municipal e deve fazer todos refletir.
No decorrer da campanha oficial, o tema foi também comentado por António Fonseca, à data candidato do Chega à presidência da Câmara do Porto, que afirmou que, tendo Rui Moreira “98% de probabilidades de ser condenado”, “se tivesse um bocado de vergonha, não se candidatava ao mandato de 2021”.