Dos 189 crimes na acusação da Operação Marquês, a decisão instrutória determinou que só 17 vão a julgamento, e nenhum deles de corrupção, num processo longe de terminar e cujo próximo capítulo será o recurso do Ministério Público.
A leitura da decisão instrutória do processo Operação Marquês, que decorreu durante mais de três horas no Campus da Justiça, em Lisboa, marcou o final da fase de instrução que começou em 28 de janeiro de 2019, num processo que cuja investigação se iniciou em 2013.
O juiz Ivo Rosa sumarizou a decisão, deixando diversas críticas à acusação do Ministério Público, liderada pelo procurador Rosário Teixeira, que qualificou algumas vezes como sendo “delirante”, uma “fantasia” e com “pouco rigor e consistência”, justificando assim que a maioria dos crimes “caíam por terra”. À exceção dos tais 17, que ficaram limitados a branqueamento de capitais, falsificação de documento e abuso de poder.
Em concreto, entre os 28 arguidos, dos quais 19 pessoas individuais e nove empresas, o juiz de instrução decidiu mandar para julgamento o ex-primeiro ministro José Sócrates, o seu amigo e empresário Carlos Santos Silva, o ex-ministro Armando Vara, o antigo banqueiro Ricardo Salgado, todos por crimes económicos e financeiros.
O ex-motorista de Sócrates João Perna ficou pronunciado por detenção de arma proibida.
O antigo chefe de Governo, e o primeiro a ir a julgamento em Portugal, foi pronunciado por três crimes de branqueamento de capitais, estando em causa verbas de 1,72 milhões de euros entregues por Carlos Santos Silva, o empresário e alegado testa-de-ferro, a Sócrates, e que responderá em coautoria pelos mesmos crimes.
o juiz admitiu que as verbas entregues por Santos Silva a Sócrates configuravam o crime de corrupção, mas que prescreveu.
José Sócrates foi acusado pelo Ministério Público de um total de 31 crimes, incluindo crimes de corrupção passiva de titular de cargo político, branqueamento de capitais, falsificação de documento e fraude fiscal qualificada. Destes, só seis se mantiveram de pé.
O ex-primeiro-ministro foi ilibado dos crimes de corrupção passiva relacionados com o Grupo Lena e o empresário e seu alegado testa-de-ferro, Carlos Santos Silva, entre 2005 e 2011, outro entre o ex-chefe do Governo e o antigo banqueiro Ricardo Salgado envolvendo o Grupo Espírito Santo e a PT, e ainda um terceiro em coautoria com o ex-ministro Armando Vara sobre o financiamento pela Caixa Geral de Depósitos do empreendimento Vale do Lobo.
O crime de branqueamento de capitais, agora imputado, tem uma moldura penal de dois a 12 anos de prisão, e para o crime de falsificação a lei penal pune o ilícito de um a cinco anos quando for praticado por funcionário (por exemplo, titular de cargo político) e de um a três anos para os restantes casos.
À saída do Campus da Justiça, onde decorreu a leitura da decisão instrutória, José Sócrates reiterou que as acusações eram falsas, assegurando que se ia defender, fosse em julgamento ou recorrendo da decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa, como vai fazer, por seu lado, o Ministério Público.
José Sócrates que disse ter sido alvo de uma “gravíssima injustiça”, deixou críticas ao Ministério Público, que acusou de manipulação política e ter “escolhido” o juiz Carlos Alexandre, considerando que a distribuição do processo foi “manipulada e viciada”.
A este respeito, durante a leitura da decisão, o juiz Ivo Rosa anunciou que extraiu uma certidão para a Procuradoria-Geral da República (PGR) averiguar a distribuição do processo da Operação Marquês ao juiz Carlos Alexandre.
Segundo Ivo Rosa, em causa está a eventual violação do princípio do juiz natural ou juiz legal.
Em reação, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) garantiu que em todos os tribunais, nomeadamente no Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), existem regras transparentes sobre atribuição e transição de processos, com respeito pelo princípio do juiz natural.
Além de José Sócrates, o antigo ministro socialista e ex-administrador da Caixa Geral de Depósitos (CGD) Armando Vara vai a julgamento por um crime de branqueamento de capitais, tendo sido ilibado dos restantes crimes: um de corrupção passiva de titular de cargo político, um de branqueamento de capitais e dois de fraude fiscal qualificada.
Por seu lado, o antigo presidente do Banco Espírito Santo (BES) Ricardo Salgado foi pronunciado por três crimes de abuso de confiança, devido a transferências de mais de 10 milhões de euros, ilícito penal que é punido de um a oito anos quando está em causa “valor consideravelmente elevado”. Na situação de abuso confiança, na forma simples, o Código Penal pune o crime com pena de um a três anos.
À saída da sessão, o advogado de Ricardo Salgado, Francisco Proença de Carvalho, manifestou-se confiante e disse que, “se a justiça mantiver a distância necessária em relação a tanta coisa que se diz, sem se saber o que se está a dizer”, o ex-banqueiro será absolvido.
Ricardo Salgado foi ilibado dos dois crimes de corrupção ativa e de um de corrupção ativa de titular de cargo político.
Além do não pronunciamento do antigo primeiro-ministro e de Carlos Santos Silva pelos crimes de corrupção passiva de titular de cargo político, e de corrupção ativa no caso de Santos Silva, o juiz Ivo Rosa deixou também cair os crimes de corrupção ativa de titular de cargo político e de corrupção ativa de que estava acusado o ex-administrador do Grupo Lena Joaquim Barroca.
A decisão iliba também o ex-presidente da PT Henrique Granadeiro de oito crimes: corrupção passiva (um), branqueamento de capitais (dois), peculato (um), abuso de confiança (um) e fraude fiscal qualificada (três).
Também Zeinal Bava, ex-presidente executivo da PT, foi ilibado de cinco crimes: corrupção passiva (um), branqueamento de capitais (um), falsificação de documento (um) e fraude fiscal qualificada (dois).
Armando Vara, ex-ministro socialista e antigo administrador da Caixa Geral de Depósitos, deixou de estar acusado de corrupção passiva de titular de cargo político.
Ivo Rosa ilibou igualmente Horta e Costa, administrador não executivo dos CTT, do crime de corrupção ativa de titular de cargo político e Henrique Granadeiro, ex-gestor da PT, do crime de corrupção passiva.
O juiz determinou ainda que Sócrates e Carlos Santos Silva sejam julgados em conjunto por um tribunal coletivo e que Salgado e Armando Vara sejam julgados em processos autónomos. João perna será julgado por um juiz singular.
Do lado dos nomes ilibados, o advogado de Helder Bataglia, Rui Patrício, manifestou-se satisfeito com a decisão instrutória proferida e adiantou que não pretende pedir qualquer indemnização ao Estado, ao contrário de Castanheira Neves, advogado do ex-administrador do grupo Lena Joaquim Barroca, que admitiu fazê-lo “a seu tempo”.
Fazendo um balanço deste primeiro capítulo de um dos processos mais mediáticos de sempre da justiça portuguesa, o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) considerou que a confiança na Justiça não se pode basear num único processo, numa alusão à Operação Marquês, e frisou que para o Ministério Público não há vitórias ou derrotas.
A Ordem dos Advogados defendeu por sua vez que o Ministério Público (MP) deve dar explicações sobre o que se passou no processo Operação Marquês e salientou que a situação justifica uma “profunda reflexão sobre o funcionamento da Justiça”.