A ligação das pessoas com a natureza e a forma como a religião e a mitologia moldam essa relação inspiraram a curta-metragem “Espíritos e rochas: Um mito açoriano”, de Aylin Gökmen, que será exibido no Sundance Film Festival.
Foi através do programa de mobilidade Doc Nomads Erasmus que a cineasta suíço-turca, Aylin Gökmen, chegou a Portugal. Durante o mestrado em cinema documental, passou por Bruxelas, Budapeste e Lisboa, mas foi a Portugal que escolheu voltar, porque tinha uma “relação especial com [o país] e os portugueses”, explicou à agência Lusa.
“Queria fazer um filme sobre pessoas e a natureza, por isso, achei que tinha de voltar para Portugal, porque me apaixonei pelas pessoas e pelas paisagens”, concretizou a realizadora.
Ao descobrir os Açores, a escolha foi imediata: “Nem pensei muito, comprei um bilhete de avião e fui para o Pico, porque acho que no Pico há um grande fascínio pelo vulcão”, contou.
Começou por fazer uma viagem exploratória, de duas semanas, na ilha, onde fez “amigos facilmente”, que a ajudaram a “descobrir o objeto do filme e que pessoas filmar”.
Acabaria por voltar à ‘ilha montanha’ para filmar, essencialmente, paisagens e, uma outra vez, no verão, para filmar uma celebração do Espírito Santo.
“Queria muito filmar a procissão, as orações acerca de como as pessoas interpretavam as catástrofes naturais como castigos de Deus. Acho muito interessante que essa interpretação esteja tão enraizada na cultura, ainda hoje em dia”, explicou a realizadora à Lusa.
Outro aspeto que quis focar foi “o isolamento e também a imigração, não só por causa dos desastres naturais, mas também, por exemplo, quando acabou a baleação, quando houve uma grande onda de emigração”.
“Foi muito interessante perceber também a distância entre as pessoas que ficam e as que vão para Portugal continental, mas também para os Estados Unidos, onde há uma grande comunidade”, afirmou.
O que levou, porém, Aylin Gökmen até ao Pico foi a presença da montanha na vida dos ‘picarotos’.
“Gostei do facto de a natureza e a ilha estarem tão presentes na vida das pessoas. Até quando acordam de manhã, as pessoas não dizem que está bom ou mau tempo, em vez disso dizem: ‘Oh, o Pico hoje está-se a mostrar, é tão bonita [a montanha]’… Achei incrível”, confessa.
A realizadora enveredou pelo cinema documental no mestrado, mas antes tirou uma licenciatura em Filosofia e Francês Moderno, uma área que acabou por incorporar na sua obra: “Como tinha uma licenciatura numa área completamente diferente, a princípio, quando queria começar a fazer filmes, estava um bocado preocupada, porque pensava ‘Será que vou tarde? Como é que vou fazer isto?’, mas, por fim, acabei por usar o que aprendi sobre literatura nos meus filmes, e neste também”.
O papel da mitologia é um desses reflexos, tal como as preces, que “são uma parte da identidade daquele sítio”, explicou.
A literatura é igualmente visível na forma como o seu trabalho “está entre o documentário e a ficção”, considera a realizadora, afirmando que se interessa “não só pelo que se vê, mas também pelo que se passa na mente das pessoas”.
“No Pico, e nos Açores, sente-se muito que há um passado que está sempre presente. Filmámos muito, por exemplo, em casas abandonadas. Consegue-se sentir que há tanto que se passou ali e essa era uma sensação que eu queria transmitir – a de que há alguma coisa que acontece fora do enquadramento”, referiu à Lusa.
O maior desafio, confessou, foi fazer uma curta-metragem de apenas 14 minutos. “Não podia mostrar tudo e há tanto mais”.
“Espero que outros cineastas, especialmente portugueses, que têm essa ligação especial, continuem a fazer filmes lá. Mal posso esperar por vê-los. E espero voltar em breve”, disse à Lusa.
O filme foi rodado em 2018, e serviu como projeto final de mestrado, mas só em 2020, depois de “um processo extenso de reedição”, é que foi enviado para os festivais de cinema, tendo-se estreado no Festival de Locarno.
“Demorou muito tempo até voltar a pegar nele, porque estava sempre a reeditá-lo. Fizemos um trabalho enorme no som. Cada detalhe foi trabalhado e pensado”, contou.
Filmado a preto e branco, “Espíritos e rochas: Um mito açoriano” tem tido boas reações do público, disse a realizadora. “As pessoas que nunca lá foram ficam fascinadas, dizem-me que querem lá ir e ver, porque acho que o filme tem uma atmosfera onírica, que quase que faz parecer que não é real. É bastante fantástico”.
A realizadora terminou agora uma ‘curta’ para a televisão suíça, que mostra como atravessou o confinamento, e está a preparar a sua primeira longa-metragem, que será rodada na Turquia.
“Vai ser semelhante ao filme sobre os Açores, porque vai ter a ver com as pessoas, com o povo, e também com a mitologia. Por agora, é só isso que posso dizer. Vai ser o irmão mais velho da curta feita nos Açores”, explicou à Lusa.
Aylin Gökmen licenciou-se em Filosofia e Francês Moderno pela Universidade de Lausana e tem um mestrado em cinema documental pelo programa DocNomads Erasmus Mundus. Este ano, cofundou a produtora A Vol d’Oiseau.
“Espíritos e rochas: Um mito açoriano” é exibido na próxima quinta-feira, no Festival de Sundance, nos Estados Unidos, no âmbito do programa de curtas-metragens documentais.