OPINIÃO DE PAULO PISCO
Deputado eleito pelo PS – Círculo da Europa
Em nenhuma democracia civilizada os políticos procuram o protagonismo à custa da humilhação dos seus adversários, da ofensa e da provocação gratuita, das agressões verbais. Mas André Ventura tem trazido lama para a vida política portuguesa, tem dividido a sociedade e legitimado o racismo, a xenofobia e os ataques à democracia, tem atacado a imprensa e os seus apoiantes têm ameaçado e coagido os seus opositores nas redes sociais. A sua campanha para as presidenciais tem sido um teatro grosseiro de ofensas, intolerância e de falta de respeito. Uma anomalia de caráter que tem vindo a normalizar-se, a exemplo do que aconteceu com Donald Trump, que acabou da forma que todos sabem com a invasão do Capitólio. Se foi possível na democracia dos Estados Unidos, poderá também acontecer em qualquer outra parte do mundo.
Salvaguardadas as devidas proporções, o nível de egocentrismo e de culto da personalidade é idêntico ao de outros líderes políticos que no passado fizeram história pelas piores razões, fruto de um tempo e de uma ideologia, muitas vezes com consequências trágicas do ponto de vista humano e para a democracia. Nesta vaga de populismos nacionalistas, basta pensar nos resultados infelizes da governação de Trump, Bolsonaro ou Matteo Salvini, em que a desumanidade se torna normalidade. Tal como aconteceu com as profundas crises pandémica e financeira após a I Guerra Mundial, com a gripe espanhola em 1918-20, e com a crise financeira decorrente do crash da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, que foram o viveiro para o aparecimento de figuras sinistras e autoritárias, também agora o mundo está a ser atingido por uma violenta pandemia, dez anos depois de uma grave crise económica e financeira, que veio na sequência da guerra global ao terrorismo após os ataques às Torres Gémeas em Nova Iorque. E essas figuras sinistras também têm aparecido agora, explorando sem escrúpulos o contexto de crise e insegurança para tentarem a conquista do poder. Os populistas são parasitas da democracia que aproveitam os momentos de dificuldades para semear a desordem, a confusão e a desinformação, em absoluto desprezo pelo esforço coletivo para superar as crises. Os seus alvos estão bem definidos:
a imigração e as minorias, a rejeição do multiculturalismo, o sistema e a corrupção das elites, como se não houvesse instituições para a combater. E depois é tudo apenas uma questão de retórica, psicologia e bom uso das redes sociais. É a tempestade perfeita para atacar a democracia e os seus valores, ao arrepio de todos os esforços que os governos possam fazer para aprofundar a justiça social, a solidariedade e a igualdade de oportunidades para todos. Não admira que a extrema-direita tenha chegado mais tarde a Portugal, porque nunca o país teve problemas com a imigração, com o multiculturalismo ou com a religião. Pelo contrário, sempre fomos vistos como exemplares nestes domínios. Por isso, a única onda que a extrema-direita portuguesa podia cavalgar era a da estigmatização da etnia cigana, que foi o que o Chega fez, a par da hipervalorização das forças de segurança, a partir de onde se desenvolveu toda a retórica populista e securitária, mesmo que Portugal seja o terceiro país mais seguro do mundo. Ventura não critica nem condena os abusos das forças de segurança, nem as vítimas de racismo. Pelo contrário, protege sempre as forças de segurança, mesmo
quando existe flagrante violação dos direitos fundamentais, o que constitui um precedente perigoso para admissão de todo o tipo de arbitrariedades.
Aquilo que a extrema-direita faz em Portugal é uma desconstrução dos valores humanistas e universalistas e um esvaziamento da história, fazendo tábua rasa da nossa convivência histórica com outros povos e da pedagogia da aceitação. E isto representa um retrocesso civilizacional.
A civilização não é apenas evolução técnica. É, acima de tudo, o progresso das mentalidades e a compreensão de que nada distingue os seres humanos, se a todos forem
dadas as mesmas oportunidades, independentemente da sua condição. E o mesmo se aplica à vida política. O que sustenta as sociedades democráticas é o respeito por todas as opções políticas e ideológicas, é a tolerância e a convivência na diversidade, sem estigmatizações. Não aceitar estes valores é o princípio onde germina a semente de todas as “limpezas” de que Ventura fala, é onde mora o germe do fascismo.
PAULO PISCO – DEPUTADO