José Guedes foi comissário de bordo e chegou a Comandante da TAP onde fez uma carreira fantástica. É um incrível contador de estórias que “voam mais alto” do que os próprios aviões que comandou.
No início da minha carreira, uns três meses depois de ter sido «largado» como copiloto em Boeing 727, saiu-me na escala um voo que era considerado pela maioria dos tripulantes da TAP como um «frete» olímpico. Tratava-se de fazer a ligação Lisboa-Sal-Bissau-Sal-Lisboa, também conhecido como o «bisSal», um voo que começava perto das 23:00 hrs e implicava uma noite inteira de serviço mais uma parte da manhã, isto para não falar das quatro aterragens. Como era dos mais novos era pegar e calar.
Assim foi.
O voo saiu atrasado de Lisboa (what else?) e atrasou ainda mais na ilha do Sal pelo que quando começámos a aproximação a Bissau já o sol ia alto e a temperatura ambiente também (trinta e tal). Como sempre acontecia após uma noite em claro o comandante tinha a suprema generosidade de atribuir a aterragem ao copiloto, este vosso amigo, gesto que interpretei como prova de confiança nos meus «vastos» (pensava eu) recursos de aviador. Não era prova de confiança, era gozo mesmo como adiante se verá.
Fiz as minhas contas e preparei-me para fazer uma «schweppes» (aterragem super suave) dedicada aos nossos pacientes passageiros que iam chegar atrasadíssimos ao seu destino. Nada mais fácil.
Além da pista o aeroporto de Bissau só tinha … a pista. Nem luzes de aproximação, nem indicadores de descida (VASI), nem ILS, nem nada. Era tudo feito a olho e fé em Deus mas naquele momento ninguém queria saber disso para nada; só nos interessava aterrar e atacar o bife de macaco, perdão, o bife de animal desconhecido que nos iria ser servido no restaurante do aeroporto à laia de pequeno almoço. Ainda hoje sinto saudades do macaco, perdão, do tal bife de animal desconhecido.
Fiz tudo direitinho, como se esperava, e quando o avião estava sobre a pista pensei para mim próprio «esta já não falha» e reduzi os motores para o mínimo. Instantes depois em vez da tão aguardada «schweppes» tive a sensação de ter caído de um terceiro andar. Foi uma «trancada» enorme que fez saltar as máscaras de oxigénio dos passageiros e, ao que me disseram, algumas dentaduras. No final não ocorreram outros danos além dos estragos causados ao meu orgulho de aviador, principalmente quando o comandante se virou para mim e soltou um estridente «Então, pá???» mesmo antes do avião parar.
Quando parou veio a lição:
«Vê lá se aprendes. Com temperaturas muito altas o ar fica menos denso e precisas de mais velocidade para obter a mesma sustentação. Além disso, a configuração do Boeing 727 não ajuda. A «flecha» (ângulo) da asa é muito pronunciada e o facto de ter os três motores na cauda dá-lhe características aerodinâmicas diferentes de tudo quanto conheceste até agora. Entendido?»
Entendido. Só foi pena Sua Excelência não ter dado a lição antes da «trancada». Sempre evitava aquela humilhação.
Claro que quando chegou a minha vez de ser comandante fiz exactamente a mesma coisa aos meus copilotos mas essa conversa não é agora para aqui chamada, ora…
Anos mais tarde eram os nossos Airbus A340 que tinham problemas para descolarem de Bangkok com peso máximo quando a temperatura atingia valores elevados. Só havia duas possibilidades: ou se retirava «payload» (carga e/ou passageiros) ou combustível. No primeiro caso perdia-se receita, no segundo aumentava a despesa pois tornava-se necessário fazer uma aterragem intermédia para abastecer e chegar a Lisboa. Não admira que essa linha tenha durado pouco tempo.
Outro aeroporto crítico era Joanesburgo. Quando havia temperaturas muito elevadas, facto que não era muito frequente, tínhamos que lidar também com o factor altitude, o que em muito afectava a performance do A340. Mas que me lembre nunca tive de abdicar de um quilo que fosse para poder descolar rumo a Lisboa. Tive sorte.
AVISO à navegação: as «trancadas» não são perigosas, podem até ser úteis para ajudar a dissipar a energia que o avião traz no momento da aterragem. O que não há dúvida é que são desconfortáveis para os passageiros e péssimas para a auto estima dos pilotos. O ideal é qualquer coisa entre a «trancada» e a «schweppes». Palavra de aviador.
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