Depois de nas cerimónias de ontem à noite ter alertado para atitudes “manipuladoras e populistas” de alguns líderes políticos, perante a pandemia, hoje D. José Ornelas encerrou as celebrações em Fátima com um apelo à valorização das mulheres na Igreja. O bispo de Setúbal e presidente da Conferência Episcopal presidiu às celebrações de 12 e 13 de outubro, no Santuário de Fátima.
A Peregrinação Internacional Aniversaria de outubro – que assinala a sexta e última aparição aos três pastorinhos na Cova da Iria – esteve longe da enchente de peregrinos dos anos anteriores.
Perante a pandemia de Covid-19, o Santuário estipulou um máximo de seis mil pessoas no recinto, posicionadas em espaços delimitados com círculos marcados no chão para garantir uma maior perceção de distância social necessária. Mas esse número não chegou a ser atingido: as celebrações da noite de ontem reuniram 4518 peregrinos, 52 sacerdotes e nove bispos, na Procissão das Velas, enquanto hoje estiveram no recinto pouco mais de 4.000 pessoas, informou o Santuário.
Na noite de ontem, e diante de um recinto com uma configuração totalmente diferente, D. José Ornelas criticou as atitudes “manipuladoras e populistas” de alguns líderes políticos, perante a pandemia.
“Durante esta pandemia, a par da mais heroica abnegação e generosidade de tanta gente, têm-se manifestado também muitas e poderosas atitudes manipuladoras, populistas, interesseiras e egoístas, sem remorso de usar o sofrimento, o desconcerto, a desorientação, para daí tirar dividendos políticos e económicos, criando mesmo conflitos”, referiu o bispo de Setúbal, na celebração da vigília do primeiro dia da Peregrinação Internacional Aniversaria de outubro.
Um olhar sobre quem cuida
Defendeu que, para além da pandemia de Covid-19 e de outras que aconteceram ou podem acontecer, existem “muitos monstros pandémicos que põem em perigo a vida e o futuro de todos”. E desafiou os cristãos a superar esta crise de forma a que todos “possam sair beneficiados, numa humanidade mais solidária e mais fraterna”.
O responsável católico apelou, por outro lado, a uma resposta solidária para a crise social e económica provocada pela pandemia. “É possível e é necessário que nós colaboremos para que, desta travessia do deserto da pandemia, possa nascer uma humanidade que habite uma terra que seja casa comum, que seja terra para todos”, sublinhou.
“Não permitamos que os mais débeis fiquem esquecidos nas suas dificuldades. Cresçamos na solidariedade, na criatividade, na busca de caminhos novos para um mundo novo, com os muitos problemas e oportunidades que temos diante” defendeu.
O também presidente da Conferência Episcopal Portuguesa não ignorou este contexto na homilia que proferiu na vigília. Aludindo ao limite máximo de 6.000 pessoas no recinto do Santuário durante a peregrinação deste ani, D. José Ornelas afirmou que é um “sinal claro das limitações e condicionalismos que atingem o mundo”, com consequências que afetam sobretudo os mais frágeis.
D. José Ornelas evocou o exemplo de quem se dedica ao próximo, “apesar das dificuldades e hostilidades que encontra”. “Pensemos, por exemplo, naqueles e naquelas que estão a fazer esforços incríveis, em condições dramáticas, para socorrer as pessoas atingidas pela pandemia, nos hospitais, nos lares, nas casas onde se vive em solidão, nos campos de refugiados sem condições, na busca soluções para todos e não apenas para alguns”, pediu.
O bispo de Setúbal apresentou aos peregrinos a figura da Virgem Maria como “a imagem da proximidade com aquele que foi injustamente rejeitado, caluniado, condenado e executado”, a imagem “materna de cuidar dos mais frágeis e dos descartados, da coragem de partilhar a sorte dos condenados, dos excluídos, dos incómodos”.
Igreja deve acentuar o “feminino e o materno”
Depois de na noite do dia 12 ter destacado a força da figura de Maria, na homilia da Missa Internacional Aniversaria do dia 13 D. José Ornelas pediu uma Igreja que acentue o “feminino e o materno”. E destacou o “contributo decisivo” das mulheres para a valorização dos ministérios na Igreja.
Mas o bispo de Setúbal começou por assinalar o comportamento contido dos peregrinos. “Todos sabemos que essa forma mais atenta e cuidada provém de uma atitude necessária e responsável perante os condicionalismos da pandemia que veio alterar radicalmente toda a vida da humanidade, sobretudo nos modos de relacionamento entre as pessoas. Trazemos a esta santuário as dores nossas e da humanidade, pedindo luz e força para vencermos esta pandemia.”
O presidente da celebração refletiu ainda sobre o significado de ser Igreja e disse ser importante que as paróquia, comunidades, dioceses e a Igreja em todo o mundo “sejam verdadeiras casas de Deus no meio da sociedade, pontos de referência e de acolhimento de quem busca apoio, sentido de vida e esperança”.
Numa reflexão onde valorizou o papel da mulher, D. José Ornelas frisou o seu “contributo decisivo para a valorização dos ministérios na Igreja”, que, assumiu, estarem “demasiado concentrados nos ministérios ordenados”.
“Esta presença feminina e materna de Maria (…) lança uma luz de entendimento sobre a identidade e a missão da Igreja, não como um facto secundário ou subsidiário perante o protagonismo masculino, mas como um importante elemento constitutivo da Igreja”, defendeu, acrescentando que “acentuar o feminino e o materno (…) trata-se de mudar de paradigma: a liderança eclesial não está fundada sobre a ideia de poder, mas na vida, no cuidado e no serviço, utilizando todos os dons do Espírito na edificação da casa do Senhor, a partir do amor paterno e materno de Deus”. E afirmou a necessidade de “deixar entrar na vida das nossas comunidades os sinais femininos e maternos de Maria”, inclusivamente nos lugares onde se tomam decisões para todos.
Alerta para “nacionalismos egoístas e conflituosos”
Na sua homilia, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa alertou ainda para “os movimentos populistas que manipulam a nostalgia do passado” e exacerbam “nacionalismos egoístas e conflituosos”.
“Vivemos num tempo em que movimentos populistas manipulam a nostalgia do passado, o medo real e imaginário, o perigo do estrangeiro e do que pensa diferente, que usam a ganância de possuir e dominar e até usam o nome de Deus e modelos religiosos para os seus interesses”, vincou D. José Ornelas.
Acrescentou que esses movimentos “constroem muros, exacerbam nacionalismos egoístas e conflituosos”, impedindo que “se chegue a consensos mundiais para encontrar soluções para os problemas de todos, como a pobreza, a injustiça, a guerra e a depredação do planeta, que colocam em perigo o futuro”.
Para o bispo de Setúbal, “este não é certamente o projeto de Deus” e “não é deste modo que se constrói a Igreja”.
“A pandemia veio tornar mais visíveis estes problemas, como todos sabemos. Estamos no mesmo barco. Ou nos ajudamos para nos salvarmos todos ou então o barco afunda”, asseverou.