Contextualizado no silêncio tão relaxante e no encantamento natural da ruralidade da aldeia, vieram-me à lembrança os tempos das malhas em Frieira!… Das malhas com malhos, dos trilhos, das malhadeiras, das eiras, das inerentes canseiras e poeiras, mas também as divertidas e criativas brincadeiras.
Tempos que já lá vão, mas que permanecem na minha memória, não só pela faina em si própria que preenchia os meus verões, mas também pela própria história e tantas histórias vividas e sentidas, jamais esquecidas, que ainda hoje recordo com singular emoção.
Tendo em conta a forma como o mundo “pula e avança”, falar da faina agrícola das malhas é também refletir sobre o período de mudança. É recuar na memória de um tempo vivido por muita gente e que ainda se sente, pois faz parte de uma história que se recorda com particular saudade e relativa glória.
Já lá vão umas dezenas de anos, é certo, mas as memórias ainda permanecem por perto. Tempo em que, nas nossas aldeias, havia gente que vivia, produzia e permanecia. E, de modo diferente, tudo acontecia, tornando-se o trabalho duro um potenciador de redobrado entusiasmo, singular energia, interatividade positiva e muita alegria.
Impregnada, ainda, na minha memória biológica a imagem dos trilhos, atrelados a uma junta de vacas, bois, burros, ou machos e mulas, onde os garotos gostavam de andar num repetido andamento circular, recordo os malhos que, cadenciadamente, trucidavam o cereal para da palha o grão separar.
“Recordo os engaços e as espalhadouras para a palha movimentar, os vassouros de grudos com que, animadamente as mulheres varriam a eira, movendo aquele “vasculho” no meio de muita poeira para os preciosos grãos juntarem”
Recordo os engaços e as espalhadouras para a palha movimentar, os vassouros de grudos com que, animadamente as mulheres varriam a eira, movendo aquele “vasculho” no meio de muita poeira para os preciosos grãos juntarem.
Na minha retina permanecem, também, gravados os gestos de magia ancestral, atirando o cereal ao ar, aproveitando a brisa do vento que, tantas vezes, se esquecia de colaborar, para os grãos das maiores impurezas limpar.
E que lindo quadro acontecia quando os sacos, do tradicional linho, a abarrotar de grão se amontoavam harmoniosamente no chão. Depois, então, se carregavam os carros de bois para levar a casa o tão desejado pão, deixando para trás o sol que, lá longe, se escondia depois de ter brindado com o seu calor mais um dia de verão.
Na altura, a colheita do pão era mesmo assim, tornava-se quase um exigente “vício” de muita entrega, pouca rentabilidade e enorme sacrifício.
Por isso, e ainda bem que, sobretudo a partir da segunda metade do século passado, destes rituais agrícolas os agricultores se foram libertando e os processos de malhar o pão alterando, à medida que as malhadeiras mecânicas foram surgindo e proliferando.
Embora na época o avanço fosse significativo, o esforço continuava a ser enorme para o pão-nosso de cada dia a casa levar, fosse centeio ou o trigo, que tantas vezes escasseava para as famílias alimentar.
“Nesse tempo, em que se pagava a maquia com este produto da terra, ou ao barbeiro o serviço prestado à família ao longo do ano, com uns “razões” de cereal, também existiam os celeiros onde, após o registo da produção através dos “manifestos”, era recebido o cereal sobrante das necessidades do núcleo familiar, sempre com venda garantida e quantia previamente estabelecida” |
Como tantas vezes me perco nos pensamentos, no meu imaginar, no meu recordar, acabando por ocupar este meu espaço sobre este assunto e com muito mais ainda para dizer, e mesmo sem das malhadeiras falar, tenho que me conter… Porém, não posso deixar de me referir às searas que, em tempos idos, pelo Nordeste Transmontano proliferavam enquanto, na referida altura, os incêndios escasseavam.
Era em boa parte das searas de trigo e centeio que se alimentava o povo, e de aveia e cevada se alimentavam os animais domésticos. E era também do trigo e do centeio que provinha algum dinheiro para a economia familiar.
Nesse tempo, em que se pagava a maquia com este produto da terra, ou ao barbeiro o serviço prestado à família ao longo do ano, com uns “razões” de cereal, também existiam os celeiros onde, após o registo da produção através dos “manifestos”, era recebido o cereal sobrante das necessidades do núcleo familiar, sempre com venda garantida e quantia previamente estabelecida.
“Os celeiros, a maior parte deles, desbaratos com os “pojantes” armazéns envolvidos em silvados e a cair aos bocados, são uma demonstração de programas de reconversão agrícola mais estruturados. Oxalá a pandemia não nos venha fazer lembrar o tempo em que tínhamos cereal para ceifar, malhar e o pão que no quotidiano nos alimentava”
Hoje tudo é diferente, o cultivo do cereal foi desincentivado, a maior parte das terras ficaram abandonadas, os “termos” desqualificados e os fatores propícios aos incêndios reforçados.
Os celeiros, a maior parte deles, desbaratos com os “pojantes” armazéns envolvidos em silvados e a cair aos bocados, são uma demonstração de programas de reconversão agrícola mais estruturados.
Oxalá a pandemia não nos venha fazer lembrar o tempo em que tínhamos cereal para ceifar, malhar e o pão que no quotidiano nos alimentava.
Nota final: de referir que embora o imóvel do Celeiro de Bragança – que pela sua dimensão, especificidade e altura seja de fácil identificação na cidade – venha a ser reconvertido no Museu da Língua Portuguesa (com o projeto em adiantado estado de finalização), não deve ser esquecido que aquele era uma importante referência da região e uma identidade com o cereal e a sua produção.