Em outubro de 2019 o Governo Brasileiro criou o Consulado Honorário do Brasil em Fátima-Ourém. O Consulado Honorário não se ocupa da emissão de vistos, passaportes, certificação, atos de Registo Civil, bem como outros atos Notariais que são de exclusiva competência dos Consulados Gerais do Brasil. Não tem colaboradores, ninguém é remunerado, embora conte com o apoio de uma equipa de voluntários dedicados, familiares e amigos liderados pelo Cônsul Honorário Carlos Evaristo. A sua missão é a defesa dos direitos e a assistência aos membros da comunidade brasileira residentes ou de passagem na região.
Sendo você mesmo um emigrante com um papel ativo nas comunidades luso-canadianas em London (Ontário) e Toronto, como é que vê a situação dos emigrantes em geral?
A situação de qualquer emigrante no mundo pode ser um desafio ou um drama. Há o sonho de rapidamente melhorar de vida, mas depois na realidade verifica-se que não é assim tão fácil. No Canadá vi isto, tanto nas comunidades portuguesa, como na brasileira e até na italiana. O sonho dourado para muitos demora a realizar-se e para outros nunca se realiza. Até há quem fique em situação pior do que a que tinha no seu país de origem. Há pessoas com excelentes habilitações académicas no seu país a fazerem serviços de pedreiro no estrangeiro. Daí que surge por vezes uma pobreza mascarada ou envergonhada de pessoas que não querem pedir ajuda para não admitirem que estão a passar necessidades, porque o sonho se tornou num pesadelo.
Ajudei os Franciscanos de Toronto em 1987 com a obra “Saint Francis Table” ou “Mesa de São Francisco”, um restaurante na baixa onde as comidas recolhidas nos restaurantes eram servidas “a la Carte” aos sem-abrigo e necessitados que procuravam refeições. Neste conceito inovador criou-se uma linha de crédito fictícia onde depois de comer era colocada a despesa na conta. Devolvia-se assim a dignidade das pessoas necessitadas e criava-se a ideia de esperança de que um dia, ao saírem dessa situação, poderiam vir a pagar a conta que por si era insignificante e simbólica. Era um conceito novo de sopa dos pobres que não sabia a esmola.
Criámos um programa semelhante de reciclagem de comida com as Irmãs da Madre Teresa de Calcutá em que se entregava em casa dos que pediam e aceitavam a nossa ajuda. Foi o mesmo conceito mais tarde adotado por outras instituições, como a re-food do americano Hunter Halder, que tem ajudado muitos brasileiros em Portugal há várias décadas. Um trabalho meritório levado a cabo por um emigrante.
Emigrante é emigrante e os dramas vividos são sempre iguais, daí que procuram e contam com os Consulados.
Qual o papel que tem desempenhado desde a nomeação e durante esta pandemia?
Variadíssimos e até mais do que esperava para um Cônsul Honorário.
A minha primeira intervenção foi uma grande honra para mim, mas também motivo de tristeza. Foi uma ação representativa, na Missa do sétimo dia do meu grande amigo de longa data António Joaquim Fernandes, o célebre cantor Luso-Brasileiro mais conhecido como Roberto Leal que conheci há mais de 40 anos no Canadá. Ainda só tinha sido nomeado para o cargo quando foi-me pedido para representar o Senhor Embaixador do Brasil em Portugal e ler a sua mensagem de condolências.
Depois, representei o Consulado Geral no funeral de uma jovem Brasileira assassinada pelo companheiro que deixou filhos menores. Foi triste ver os sonhos de uma jovem emigrante e mãe que se estavam a realizar, tragicamente apagados pelo flagelo da violência doméstica. O Consulado Geral de Lisboa ajudou o Tribunal de Menores a cuidar e entregar as crianças aos tios.
Na passagem de Ano Novo fui chamado a intervir no caso de uma criança brasileira colhida por um comboio. Era urgente localizar e recuperar as malas e os documentos que o pai perdeu na aflição e que foram parar ao Porto. Fizemos chegar os mesmos pertences ao Hospital. Conseguir isto no dia de Ano Novo foi um desafio, mas houve muito boa gente a ajudar na CP, PSP, advogados e até amigos. Quando todos ajudam o impossível acontece, e graças a Deus a criança sobreviveu e está a recuperar bem.
Houve muitos casos de pedidos de informação e reencaminhamento para o Consulado Geral, e também de pessoas que em Fátima perderam a carteira ou a mala, mas que depois até reencontrámos. Casos de pessoas que deixaram vencer os documentos e depois precisam deles rapidamente para viajar numa emergência familiar.
Ultimamente os casos estão ligados aos efeitos da Pandemia do Covid-19. Desde 11 de Março até 18 eram muitos os casos de turistas, peregrinos e pessoas a visitarem familiares que perguntavam se perante as notícias de eminente pandemia, deviam antecipar as partidas ou continuar por cá. A todos aconselhamos o rápido regresso ao Brasil porque iria parar o trafego aéreo por vários meses. Mais tarde, recebemos muitas mensagens a agradecer termos dado esse conselho ou então teriam ficado em terra como sucedeu com muitos semanas depois.
Seguidamente, chegaram e continuam a chegar muitos pedidos diários de pessoas que foram despejadas por senhorios, sem escrúpulos nem piedade, logo que houve a declaração de Estado de Emergência. Foi ai que demos conta de haver um grande grupo de emigrantes em Leiria que eram vítimas de arrendamentos descontrolados que se aproveitavam da vulnerabilidade dos emigrantes.
Três e quatro famílias a viverem num só apartamento ou até em quartos e que pagam altos preços por rendas ilegais e desproporcionadas sem contratos e direitos alguns. O aproveitamento destas pessoas, quer em situação pandémica ou não, é deplorável e algo criminoso. Verificamos que estes casos não são denunciados às autoridades por medo de represálias.
Há também muitos casos de pessoas que ficaram desempregadas e sem direito a subsídios ou lay-off porque não estavam ainda legais, trabalhavam a recibos verdes ou não tinham os descontos mínimos para poderem ir para o desemprego.
Tem recebido muitos contactos com pedidos de ajuda de Brasileiros a residir em Portugal? Quais as intervenções que teve e quais os problemas que têm sido mais reportados?
Sim muitos. Não imaginava recebermos tantos contatos telefónicos presenciais e por via eletrónica. Tem sido dezenas de casos por dia, não só do Concelho de Ourém mas também de Tomar, Santarém, Alverca e Leiria onde existem comunidades brasileiras com bastantes problemas de vulnerabilidade.
Os pedidos eram tantos que contei com o apoio de dois assessores voluntários; o David Alves Pereira, membro da Assembleia de Freguesia local (Ourém), empresário nascido na França onde os seus pais eram emigrantes e muito dedicado à assistência social e o Bruno de Castro, também ele empresário com uma larga experiência na assessoria da Comunicação Social e Relações Públicas. Têm sido dois braços vitais deste Consulado Honorário, para ajudar a chegar a mais pessoas e a acudir às várias necessidades que surgem, tais como transportar pessoas para Lisboa durante o Estado de Emergência para serem repatriadas, mas também para levar alimentos e medicamentos a quem precisa.
Até há duas semanas atrás eram principalmente situações de pedidos de repatriamento e a logística de encontrar alojamento e alimentos pontuais para os turistas e desalojados e depois transportar essas pessoas da área de residência para os albergues ou hostels assegurados pelo governo do Brasil através dos Consulados Gerais nas cidades com aeroportos. Uma vez lá era preciso encontrar soluções para as diversas necessidades diárias até à partida; emissão de documentos de viagem caducados, alimentação, medicação e transporte para os Consulados Gerais e aeroportos. Não é responsabilidade de um Consulado Honorário tratar de tais coisas, mas ninguém fica de braços cruzados enquanto as pessoas sofrem e nisso devo de dizer que o que não se conseguiu fazer pelas representações consulares foi providenciado, de forma privada, pelos próprios Cônsul, Vice-cônsul e funcionários dos Consulados, um Staff divido em equipas, incansável que muitas coisas pagaram do seu próprio bolso, desde carregamentos de telemóveis, comida, medicamentos e transporte. Os atos de Solidariedade Social praticados nos últimos tempos no anonimato têm sido incríveis.
O que pode dizer sobre a situação que se assistiu no aeroporto de Lisboa com dezenas de cidadãos brasileiros a acampar e reclamar do Consulado Geral?
Acho injusto que haja pessoas a vir a público criticar e atacar as instituições Consulares de forma injustificada. Pessoas que têm trabalhado em equipas, por turnos 24 horas por dia, até à exaustão, porque não há mãos a medir com tantos casos de pedido de repatriamento.
O governo do Brasil e as representações locais têm sido extraordinários a meu ver nas respostas rápidas ao repatriamento de quase dois milhares de pessoas. É difícil, já por si, as equipas Consulares lidarem com as grandes comunidades emigrantes. Imagine agora em época de pandemia com confinamentos e restrições e tendo centenas de casos diários a ser tratados somente por meia dúzia de funcionários e depois imagine isto em cada repartição consular do mundo.
Em Portugal, o Governo Brasileiro, a pedido da Embaixada e dos Consulados Gerais, fretaram seis aviões à TAP para repatriar pessoas; primeiro na lista eram os turistas que tinham passagens compradas com voos que não se realizaram, pessoas que ficaram em terra e sem dinheiro. Muitos até compraram outras passagens para voos que também não se realizaram. Seguidamente, os casos mais vulneráveis de pessoas com crianças, grávidas, doentes e idosos. Depois, as pessoas que não faziam parte destas listas e que no princípio não queriam ser repatriados, mas com o evoluir da situação geral mudaram de ideias.
Depois, havia os que estavam na lista de espera para possíveis voos de repatriamento, em uma ou outra das situações que anteriormente referi, e que foram motivados por indivíduos e organizações que talvez procurem tirar proveitos políticos, a irem para o aeroporto de Lisboa e abancarem lá sob forma de protesto, alguns tendo sido convencidos que havia garantia de serem repatriados.
Mas como os aviões não estão a voar e ninguém pode embarcar, e muito menos em aviões fretados por outros países, sem documentação e processos de repatriamento instruídos, não é simplesmente fazendo protesto e causando escândalo que vão mudar as leis nacionais e brasileiras da aviação e da emigração. Mais triste é assistir a queixas de estar sem condições, passando necessidades e o Consulado Geral enviar funcionários para recolher pessoas para albergues fornecidos pelas autoridades, com alimentação, de forma a aguardarem a instrução dos processos e respetivos voos de repatriamento, e as mesmas recusam arrancar pé do aeroporto porque foram aconselhados que é assim que conseguem o que querem.
Não há direito, porque os casos destas pessoas estavam a ser tratados e deviam aguardar em suas casas até serem chamadas, porque ninguém ficaria esquecido e tal como os que já tinham sido repatriados com prioridade nos primeiros cinco voos, estes também seriam. Havendo até a possibilidade de os voos para os quais têm bilhete serem realizados, pelo que não precisam de ser repatriados. Há uma linha de assistência nos Consulados Gerais pelo que ninguém ficará sem assistência e a passar fome se os contactarem.
O que é que tem sido feito para apoiar a comunidade brasileira na região centro?
Localmente, o trabalho até agora tem sido arranjar alojamento temporário em instituições e até em casas de amigos. Em alguns casos foi preciso encontrar organizações para doarem camas, colchões e mantas para pessoas que dormiam no chão, em casa de outras que as acolheram. Depois, indicamos locais para irem buscar roupa, porque alguns que estavam de férias tinham roupa inadequada quando o tempo mudou. Direcionar pessoas para alimentos e medicamentos fornecidos por benfeitores particulares e associações locais e finalmente arranjar transporte terrestre até aos albergues onde pessoas vulneráveis ficaram à responsabilidade dos Consulados Gerais, que passaram a assumir a responsabilidade de cuidar por estes cidadãos até serem repatriados.
Para alguns dos que foram repatriados conseguimos até encaminhar para uma ajuda pontual em São Paulo que providenciou alojamento provisório, alimentação e medicação. Foram pessoas que ficaram à espera de transporte para suas terras natais nos dias seguintes. Houve casos de pessoas que não tinham dinheiro para comprar uma passagem, mas graças ao Deputado Luís Roberto Lorenzato de Ivreia, Presidente da Casa do Brasil em Ourém e ao Dr. Marcos Pinchiari, médico e Vereador em Santo André, num abrir e fechar de olhos, com ajuda de voluntários, foram montadas camas para albergar as pessoas. O Dr. Pinchiari não só criou condições na Casa dos Padres Scalabrinianos que apoiam os emigrantes, como também os transportou do aeroporto e de volta, alimentou, medicou e tratou os doentes, patrocinando a passagem para os que não tinham condições de a comprar. Este médico montou até, às suas custas, um hospital de campanha pronto para servir a população local.
Agora, os pedidos são de pessoas, famílias e comunidades religiosas que decidiram continuar em Portugal, mas que na presente crise estão a passar necessidades. Os emigrantes em Ourém, Fátima e Tomar nestas situações são encaminhadas para os serviços sociais municipais que estão a incluir os mesmos. Alguns serviços, como os das Câmaras de Ourém, Leiria e Tomar e o SNS dão ajudas pontuais e semanais a famílias e encontraram organizações que garantem alimentos.
Depois existem associações, como o Banco Alimentar contra a Fome, a Cruz Vermelha, a Caritas Diocesana, a Sociedade de São Vicente de Paulo, a Re-Food e várias outras organizações de solidariedade social, tais como instituições religiosas, os Bombeiros Voluntários e o Corpo de Voluntários da Ordem de Malta para onde encaminhamos muitos casos. Se cada uma destas instituições ajuda regularmente cerca de 40 famílias ou seja entre 120 a 140 pessoas. É só fazer as contas. São números assustadores.
Infelizmente houve recentemente em Leiria escassez de bens de primeira necessidade entre as muitas instituições e as pessoas voltaram a contactar o Consulado Honorário a pedir ajuda. Algumas pessoas diziam estar a passar fome há três dias. Com o consentimento do Consulado Geral em Lisboa tomámos a iniciativa de encontrar outras instituições para se realizar uma operação para fazer chegar ajuda alimentar e outros bens, rapidamente, a cerca de 150 pessoas de 20 famílias com maior necessidade.
Com a ajuda de voluntários montou-se uma operação excecional que foi a Lisboa, ao Banco Alimentar contra a Fome, buscar um carregamento de alimentos generosamente oferecido por esta associação e depois, tratou-se de fazer cabazes individuais e familiares para garantir bens alimentares para uma semana para essas pessoas, pedindo que depois se inscrevessem no Banco Alimentar ou em algum dos vários programas semelhantes das várias cadeias de supermercados conhecidos e isto para se garantir o fornecimento gratuito e continuado de bens, enquanto a situação de crise se manter. Estes cabazes foram ainda reforçados em certos casos com bens específicos para crianças e pessoas com necessidades especiais e máscaras de proteção. Bens adquiridos por instituições e particulares a quem recorremos nesta operação. Aqui devemos agradecer às Fundações D. Manuel II e Oureana, à Real Confraria do Santo Condestável, à AAKDPRH, à RISMA e à ICHR.
Temos ainda uma rede de contactos em prontidão para, caso venha a ser necessário, recorrer a benfeitores em outros desafios que esta pandemia possa criar e é bom poder contar com estas ajudas e muito gratificante poder ajudar e dar um pequeno contributo mesmo que seja uma gota de água num oceano de ações de solidariedade social maiores. Poder levar um conforto, um carinho e ver isso retribuído com um sorriso ou uma mensagem carinhosa como as que temos recebido é de um valor incalculável.
“Aqueles que não têm por dentro precisam usar por fora”, nas palavras de Fulton Sheen. Ter cargos honorários por mero capricho ou títulos pomposos, privilégios e honras, não valem nada se não houver um espirito de serviço aos mais necessitados.
Faço aquilo simplesmente que gostaria que fizessem por mim se estivesse na mesma situação de emigrante e o facto é que todos nós estamos sujeitos a passar pelo mesmo. Quem já foi emigrante, ou é, sabe bem como é a vida de emigrante. Não é fácil sofrer da rejeição social no país de acolhimento e depois quando se volta ao país natal encontrar marginalização social.
É importante valorizar o papel do emigrante na sociedade, pois é o motor que move a indústria e o comércio e estou convencido que irá ter de novo um papel importante a nível internacional para reerguer e reestabelecer após a crise, os diversos sectores da sociedade essenciais para a nossa existência comunitária.