Mais de três décadas depois de ter deixado de se realizar, a telescola está de volta, em plena era da tecnologia e da inovação. A #EscolaEmCasa é um desafio novo que exige capacidade de adaptação, motivação, disciplina e perseverança, a estudantes, docentes e pais, como testemunharam ao ‘Mundo Português’.
Mónica Monteiro ‘viveu’ a telescola já no último ano da sua emissão. Em 1987, na freguesia de Glória do Ribatejo, concelho de Salvaterra de Magos, os alunos frequentavam a mesma escola do 1º ao 6º ano, sendo o 5º e 6º anos leccionados com recurso a telescola.
O acompanhamento já não era feito pela televisão, e sim através de gravações em cassetes. Mas o conceito de telescola estava lá: um leitor de VHS, uma televisão num canto da sala que era visível para todos, alunos e professores, e cassetes com gravações das aulas dados por professores, gravadas no estúdio da RTP.
Os 5º e 6º anos escolares de Mónica foram partilhados com o professor na sala de aulas e com as duas professoras, uma para Matemática e Ciências e outra para Português, História e Francês, na televisão. “No fundo era um ensino que tinha como suporte estas emissões gravadas, como complemento das aulas dadas pelo professores”, recorda ao ‘Mundo Português’.
A aluna, que se iria licenciar em Biologia, já tinha uma queda pelas aulas de Ciências e foram essas as que mais a marcaram, na sua telescola. “Normalmente assistíamos as aulas experimentais uma vez que a nossa escola não tinha laboratório e recordo que o inicio das aulas eram sempre uma animação, com um tema que estava nos tops na altura – ‘Walk of Life’, dos Dire Straits”, conta.
Mas o que Mónica Monteiro nunca imaginaria, era que a telescola regressaria à sua casa, 33 anos depois, desta vez destinada ao filho Rodrigo, de dez anos. Já não mais em Gloria do Ribatejo, mas em São João do Estoril, concelho de Cascais, através das emissões que estão a acontecer todos os dias, para todo o país, através da RTP Memória. E tudo por causa e um vírus a que deram o nome de Covid-19.
A telescola, agora com um novo nome – #EstudoEmCasa, regressou aos lares portugueses a 20 de abril, com aulas para os alunos do 1º ao 9º ano. O projeto começou após o início do terceiro período, que aconteceu a 14 de abril, e o regresso de cerca de dois milhões de alunos ao ensino à distância.
Segundo o Ministério da Educação, mais de 850 mil alunos do ensino básico estão a ter aulas de apoio através da televisão, e estão a aprender com professores à distância devido à pandemia de Covid-19.
Uma telescola com “mais desafios”
Mais de uma centena de professores ‘entram’ diariamente nas casas dos alunos que estão a aprender sem sair da cadeira ou do sofá. São 112 docentes de seis escolas públicas, duas privadas e da ciberescola, no âmbito do programa #EstudoEmCasa, um conjunto suplementar de recursos educativos transmitidos pela RTP Memória, já que este canal chega à generalidade dos alunos, atendendo a que emite na TDT, mas também na televisão por cabo e por satélite.
De segunda a sexta, das 09h às 17h50, os conteúdos ocupam a grelha da RTP Memória, organizados para diferentes anos letivos. As aulas para o 1º e 2º ciclos são de manhã e para o 3º ciclo à tarde, “abrangendo matérias de uma ou mais disciplinas do currículo, as quais servirão de complemento ao trabalho dos professores com os seus alunos”, referiu a administração da RTP num comunicado. Para além de disciplinas como Português, Matemática, História, Geografia, Estudo do Meio e Inglês, há várias outras, como Ciência e Cidadania, História e Cidadania, Espanhol, Português Língua Não Materna, Educação Física e Educação Artística.
Mónica Monteiro compara esta nova telescola à sua e não hesita em dizer que este novo modelo “apresenta mais desafios” ao filho, uma vez que não existe a rotina da escola, “não há a professora para fazer a chamada, para explicar melhor o que o professor disse na TV e tirar as dúvidas”. E fazem falta também “os amigos para brincar no recreio, as auxiliares para olharem por eles no recreio, separar as ‘brigas’ ou cuidarem quando alguém se magoa”, acrescenta.
No fundo, faz falta a normalidade da vida que acompanhava as crianças, como ela, na antiga telescola.
A mãe do Rodrigo Monteiro de Andrade não hesita também em elogiar o programa. Acha que os conteúdos “estão muito bem feitos, e muito atuais, as aulas são dinâmicas o que ajuda a manter as crianças atentas, os professores todos excelentes comunicadores considerando que para a maioria é a primeira vez que dão aulas em frente a uma camera”. Mas sublinha que recai sobre os pais “a tarefa de colmatar as restantes lacunas o que para muitas famílias é um enorme desafio”, seja ao nível do conhecimento dos conteúdos que estão a ser ministrados, seja porque muitos pais e encarregados de educação estão em casa, mas em teletrabalho.
De uma coisa Mónica não tem dúvidas. “Este próximos meses vão certamente ficar na memória desta geração, vão colocar à prova e desenvolver muitas competências destas crianças e jovens através da capacidade de aprendizagem de novas tecnologias, adaptação, motivação, disciplina e perseverança”.
Os alunos não têm conhecimentos suficientes para trabalharem nos computadores de forma intuitiva. Enviar um email para os professores não é algo que saibam fazer. Falar com a professora ou professor através dos programas de vídeochamada, não é fácil. Por isso acho que a disciplina de iniciação à informática, na escola primária, deve ser repensada, os conteúdos devem ser adaptados para que aprendam a utilizar as ferramentas, de forma intuitiva, defende Leandro Andrade |
Desafios e dificuldades
Tanto as aulas à distância como o projeto #EstudoEmCasa trazem realmente desafios aos alunos. O Rodrigo, aluno do 4º ano da EB1 de São João do Estoril, começou a primeira semana da nova telescola “muito interessado, por ser diferente da rotina habitual”, conta o pai, Leandro Andrade, que aponta como maior dificuldade, conseguir que o menino de dez anos mantenha esse interesse e motivação até ao final do ano letivo, em junho.
“Ele animou-se, reconheceu alguns livros e músicas que leu e aprendeu na escola, gostou muito das aulas de Educação Física, mas com fim da semana percebi que a motivação diminuiu um pouco. Houve conteúdos que reconheceu facilmente, porque já os tinha dado na escola, mas teve dificuldades, por exemplo, com as aulas de Inglês, por serem dadas numa dinâmica muito rápida para quem está a acompanhar na televisão”, conta o pai.
Leandro aponta outra dificuldade, que será comum à quase totalidade dos alunos a assistirem as aulas do#EstudoEmCasa: não poderem fazer perguntas e tirar as dúvidas com a professora que está do outro lado do ecrã.
A dinâmica deste novo conceito de telescola em casa aliada às aulas pela internet e fora de uma escola física, preocupam este pai, tanto em relação à capacidade de aprendizagem no último trimestre deste ano letivo, como na criação de um método de estudo longe do ambiente escolar.
Leandro Andrade não deixa de elogiar a capacidade do Governo, via Ministério da Educação, em “conseguir criar rapidamente uma forma dos alunos não perderem o ano letivo, uma alternativa válida”, mas vê já “uma lição a tirar desta situação, para o futuro”.
“Os alunos não têm conhecimentos suficientes para trabalharem nos computadores de forma intuitiva. Enviar um email para os professores não é algo que saibam fazer. Falar com a professora ou professor através dos programas de vídeochamada, não é fácil. Por isso acho que a disciplina de iniciação à informática, na escola primária, deve ser repensada, os conteúdos devem ser adaptados para que aprendam a utilizar as ferramentas, de forma intuitiva”.
A Jéssica tem aulas todos os dias, entre a telescola e as aulas com a professora dela, para além de trabalhos de casa e estudo diários. Sobre o ensino na televisão, eu faço tudo por motivá-la, digo-lhe que é importante para complementar as aulas com a professora dela e até que pode vir a ser questionada sobre o que assistiu e aprendeu naquele dia, conta Sabrina Pinheiro |
Motivar os filhos
Para Jéssica Freitas, a primeira semana de aulas do #EstudoEmCasa foi sentida de uma forma parecida à do Rodrigo. Com 11 anos, aluna da Escola Básica e Secundária de Carcavelos, também começou entusiasmada a acompanhar a nova telescola.
Mas o entusiasmo esmoreceu um pouco, conta a mãe, Sabrina Pinheiro. Neste caso, também pelo facto da professora da filha ter, por algumas vezes, marcado a aula por videochamanda na mesma altura das aulas do 5º ano na televisão. Uma situação que os pais reportaram à direção de turma, conta esta mãe que percebe, por outro lado, que esta é uma situação à qual estão todos a adaptar-se, alunos, professores e pais.
“A Jéssica tem aulas todos os dias, entre a telescola e as aulas com a professora dela, para além de trabalhos de casa e estudo diários. Sobre o ensino na televisão, eu faço tudo por motivá-la, digo-lhe que é importante para complementar as aulas com a professora dela e até que pode vir a ser questionada sobre o que assistiu e aprendeu naquele dia”, conta.
Por outro lado, Sabrina assume que, enquando encarregada de educação, não lhe é fácil acompanhar de perto a filha, porque o conhecimento que tem dos conteúdos não substituiu de forma nenhuma a professora e porque há ainda o Artur, de nove meses, que exige outros cuidados desta mãe.
À Jéssica, ajuda o facto de ser uma aluna interessada. São as aulas de Matemática que a deixam mais atenta à televisão e se os trabalhos no início “foram mais complicados”, agora já consegue “desenrascar-se sozinha”, muito graças ao apoio que recebe da DT, revela ainda a mãe.
E à semelhança do Rodrigo, também no início o uso das ferramentas informáticas não foi intuitivo, no início. “Mas já está a adaptar-se a tudo, às aulas pela internet e às da telescola”, apesar de precisar de vez em quando de uma dose de motivação”, sublinha a mãe.
Adaptação é a palavra
Motivação, adaptação, perseverança não se aplicam apenas aos alunos. Para os docentes, a pandemia de Covid-19 também veio alterar profundamente a rotina de ensino.
Marisa Gonçalves, professora da escola EB1 de São João do Estoril sublinha que ser professor em tempo de pandemia “é adaptar todo o nosso conhecimento e prática a formas funcionais de comunicação entre professor e alunos. Sentir que estamos longe, mas queremos estar perto, dando aos alunos a segurança e a sensação de presença nas suas vidas”.
A professora de 43 anos não vivenciou enquanto aluna a telescola, mas, curiosamente, no início da sua vida de docente, ainda foi encontrar algo similar em Marvila, bairro tradicional da capital.
Não haviam aulas pela televisão, mas as cassetes de VHS, que acompanharam Mónica Monteiro em 1987, ainda eram ali utilizadas, em plenos anos 90, como complemento ao ensino em sala de aula. Mais de duas décadas depois, o conceito regressa, mas não pode ser comparado àquele que lhe deu origem, defende Marisa Gonçalves.
“Para mim o #EstudoEmCasa que hoje surge não se pode nem é comparável à Telescola, que visava a apresentação de conteúdos, mas que funcionava numa sala própria num contexto escolar, em que os alunos tinham um professor que lhes passa as tarefas relativas ao que tinham visualizado na TV. Nessa altura existia algo maior o contacto entre alunos, existia a partilha, amizade e brincadeira entre eles, aprendiam em comunidade e em grupo”, sublinha.
Os conteúdos apresentados, e falo do 3º e 4º ano pois são aqueles que tenho presenciado, revelam-se interessantes, adequados à faixa etária, havendo uma interdisciplinaridade entre as várias disciplinas, o que incentiva e acaba por forçar o aluno a relembrar e rever aquilo que já aprendeu, sentindo necessidade de assistir a todas as aulas, analisa a professora Marisa Gonçalves |
Para Marisa Gonçalves, este projeto surgido em tempos de pandemia, é uma solução para ‘obrigar’, no sentido de possibilitar, os alunos a estarem na escola, relembrando e aprendendo por si e com a ajuda da família. É um modelo que exige mais disciplina tanto de alunos como de pais e encarregados de educação, mas é um complemento importante. “Os conteúdos apresentados, e falo do 3º e 4º ano pois são aqueles que tenho presenciado, revelam-se interessantes, adequados à faixa etária, havendo uma interdisciplinaridade entre as várias disciplinas, o que incentiva e acaba por forçar o aluno a relembrar e rever aquilo que já aprendeu, sentindo necessidade de assistir a todas as aulas”, afirma a docente.
É assim que a professora vê este projeto: como um reforço educativo numa altura em que as rotinas escolares foram obrigadas a ficar à espera de melhores dias.
Novas rotinas que põem a descoberto, outras dificuldades e outras realidades. “No contexto em que vivemos, muita coisa se tem feito, mudamos estratégias, fizemos e fazemos aprendizagem em plataformas de comunicação e tentamos envolver os alunos nesse processo”, diz a professora, revelando que em plena era da tecnologia, não significa “que a dominemos”. “É isso que se sente no dia a dia, faltam conhecimentos para acompanhar os tempos que correm e o que é pedido a cada família. E, acima de tudo foi tomar consciência que nem todos têm os meios informáticos que acharíamos que tivessem”, afirma.
E, nesse sentido, num ensino onde deve prevalecer a equidade, “o #EstudoEmCasa, na TV, consegue, de uma forma ou de outra, chegar a todos os nossos alunos”. Mas a docente deixa o lamento: “com #EstudoEmCasa ou não, falta algo maior a alunos e professores: é o burburinho das salas, as risadas no corredor e as brincadeiras no pátio que vão sendo substituídas pelas sessões síncronas em videoconferência, é pouco mas vai servindo”.
Um “esforço extraordinário”
Não será o ideal, mas é, para o primeiro-ministro, uma solução que resulta do “esforço extraordinário” dos professores que estão a manter o ensino à distância, durante a pandemia de Covid-19. Elogio que estende também ao projeto #EstudoEmCasa por estar a levar as aulas aos alunos através da televisão. Na cerimónia de apresentação deste projeto, António Costa sublinhou que houve “uma capacidade extraordinária de reinventar a forma de a escola continuar, de o ensino continuar e de a aprendizagem continuar apesar de a escola estar fisicamente fechada, e os professores fizeram um pouco de tudo”.
Com #EstudoEmCasa ou não, falta algo maior a alunos e professores: é o burburinho das salas, as risadas no corredor e as brincadeiras no pátio que vão sendo substituídas pelas sessões síncronas em videoconferência, é pouco mas vai servindo, diz Marisa Gonçalves |
O governante defendeu que esta é uma solução para tornar mais acessível o ensino em tempos de pandemia. “Percebemos que há um conjunto de alunos que não têm acesso às plataformas digitais e, por isso, era preciso complementar esta oferta com uma nova oferta que pudesse chegar a todos e é por isso que criámos este programa, não para relembrar a velha telescola (…), mas para criar uma escola de hoje, que chega com os conteúdos de hoje e com as tecnologias de hoje à casa de cada um”, disse.
Também o ministro da Educação defende que o #EstudoEmCasa – que resulta de uma colaboração entre o Ministério da Educação, a RTP e a Fundação Calouste Gulbenkian – veio para que os alunos que não têm acesso aos equipamentos tecnológicos para acompanhar as aulas ‘online’ não sejam excluídos do ensino durante este período. Tiago Brandão Rodrigues agradeceu aos professores, “os verdadeiros artífices” do ensino à distância, que marcou as últimas duas semanas de aulas do segundo período, antes das férias da Páscoa, e está a marcar o resto do ano letivo, já que os estabelecimentos de ensino estão encerrados desde 16 de março, depois de o Governo ter decidido suspender as atividades letivas presenciais como forma de conter a propagação do novo coronavírus.
Durante quatro décadas a ‘velhinha’ telescola fez parte do sistema de ensino nacional. Milhares de alunos de norte a sul do pais frequentaram as aulas do quinto e sexto ano, transmitidas pela televisão. A ‘nova’ telescola, que é, à semelhança da antiga, uma grande ajuda para alunos e professores, no complemento aos conteúdos, é, por outro lado, diferente. Falta-lhe a sala de aulas, o professor para ajudar e tirar as dúvidas no momento, os alunos juntos, lado a lado nas carteiras, o recreio.
Ou como diz o Rodrigo Monteiro de Andrade, do alto dos seus dez anos, “falta a ajuda da professora, o recreio, os amigos e até a canjinha da cantina”.
Ana Grácio Pinto