Ao longo de cerca de 170 anos, a extracção de carvão mineral foi importante fonte de economia para a freguesia de São Pedro da Cova, concelho de Gondomar.
Durante mais de século e meio, os seus habitantes estiveram fortemente ligados às minas de onde, nos anos 30 e 40 do século XX, saía cerca de 65% da produção nacional de carvão.
O antigo complexo industrial mineiro, que pertenceu à Companhia das Minas de Carvão de São Pedro da Cova, encerrou em março de 1970, “essencialmente em virtude da competitividade de outros combustíveis”, como o fuelóleo e o petróleo, mas também pela “necessidade de novos investimentos tecnológicos devido à maior profundidade das camadas de carvão”, lê-se numa publicação da União de Freguesias de Fânzeres e São Pedro da Cova.
Para manter vivo, valorizar e dinamizar o património mineiro e geológico de São Pedro da Cova, foi inaugurado em 1989, um Museu Mineiro, que ocupa a antiga Casa da Malta, edifício que servia de alojamento aos operários das minas de carvão oriundos de outras localidades do país – os ‘malteses’ – e que foi adquirido pela então Junta de Freguesia de São Pedro da Cova em 1987.
Os edifícios que compõem este complexo industrial estão classificados como Monumento de Interesse Público desde março de 2010.
Das várias infra-estruturas destaca-se o cavalete, construção que surge da necessidade de posicionar os cabos de suspensão das ‘jaulas’ (elevadores) ao longo da vertical dos poços, com a função de transportar para o exterior o carvão desmontado nas galerias subterrâneas pelos trabalhadores mineiros.
Denominado ‘Cavalete do Poço de São Vicente’, pelo facto de ter sido construído sobre o Poço de São Vicente, foi o primeiro cavalete em betão a ser construído em Portugal. Tornou-se a imagem daquela comunidade mineira e ainda é uma presença dominante na paisagem.

Na Casa de Malta, edifício com dois pisos transformado em museu, viveram milhares de mineiros chegados de outras regiões e lugares distantes da freguesia.
Quase escravidão
Mas é a Casa da Malta que reúne o imenso acervo museológico com milhares de objetos. Neste edifício com dois pisos transformado em museu, viveram milhares de mineiros chegados de outras regiões e lugares distantes da freguesia.
Vinham de zonas rurais do Douro, Tâmega, Sousa entre outras e ali permaneciam durante a semana de trabalho, regressando às aldeias nos dias de descanso.
A sala de leitura e de jogos, a arrecadação de bicicletas, lavatórios, sala de refeições, cozinha, quartos de banho, arrecadação de lenhas e um dormitório com 24 quartos ocupavam o piso térreo. O andar de cima tinha capacidade para 28 camas, ou quartos, mas as condições de alojamento eram reduzidas.
“Os quartos (pequenas celas) tinham dimensões muito reduzidas, com área suficiente para pouco mais que a respetiva cama. Na sua maioria os quartos possuíam uma janela, acima do campo de visão, talvez por razões de privacidade, embora alguns mineiros afirmassem que era mais uma forma de opressão”, lê-se na publicação da Junta de Freguesia.
“As janelas muito altas, fora do alcance e dispostas numa frequência irritantemente regular, deixam perceber os ambientes opressivos de outros tempos, numa imitação perversa das galerias subterrâneas”.
Se os dormitórios eram ‘opressivos’, o trabalho mineiro não era melhor. “Há uns dias chegou-nos cá um senhor, vindo do Brasil, à procura de informação. Encontrou a própria fotografia. Tinha trabalhado no exterior, mas quando ia ser enviado para a exploração subterrânea, o pai mandou-o para o Brasil porque quis que o filho fugisse à escravidão”, contou à agência Lusa Micaela Santos, curadora do Museu Mineiro de São Pedro da Cova.
A responsável revelou ainda que, no dia em que completou 16 anos, este jovem disse ao pai que finalmente seria mineiro à séria, porque até aí faltava-lhe o gasómetro. “O pai, que conhecia bem a dureza do interior, mandou-o entregar a chapa (de identificação). Obedeceu, mas foi para o Brasil contrariado. Voltou cá décadas depois para encontrar um cadastro que lhe conta parte da sua própria história e prova que o pai teve razão em lhe proporcionar uma fuga que provavelmente o salvou”, revelou a curadora à Lusa.

Se os dormitórios eram ‘opressivos’, o trabalho mineiro não era melhor.
A revolução mineira
Com a descoberta de carvão mineral no final do século XVIII, a freguesia de São Pedro da Cova deixou a agricultura para segundo plano e desenvolveu-se a partir da industria mineira.
Cconstruíram-se e reconstruíram-se infra-estruturas de apoio à exploração recorrendo-se à utilização de meios, técnicas e materiais mais sólidos e adequados: edifícios industriais, sociais e de habitação e meios de transporte do minério para os locais de distribuição e consumo.
O complexo mineiro encontra-se a oeste da Serra de Valongo, na zona de Vale do Souto, numa área ainda rural e com algumas habitações à sua volta. Na sua maioria pertenceu à Companhia das Minas de Carvão de São Pedro da Cova.
A hegemonia das minas de carvão terminou em meados dos anos 50 do século XX e apesar de medidas tomadas pela Companhia e pelo Estado português, os problemas da empresa não se resolveram e esta teve que encerrar portas em março de 1970.
O encerramento das minas colocou fim aos hábitos e vivências que estavam enraizados na população que se vê agora obrigada a dirigir-se para a cidade do Porto à procura de novo emprego.
Entre 1970 e 1972, a Companhia das Minas de Carvão de São Pedro da Cova manteve a trabalhar alguns operários para desmantelamento do complexo mineiro: o ferro, aço, chapa e madeira foram retirados e vendidos para gerar dinheiro. “Esta acção ajudou ao aceleramento de degradação em que hoje se encontram todos os edifícios do complexo, para além do estado de abandono em que se encontra”, realça a Junta de Freguesia. Recuperada, está a Casa da Malta.
Em 1975 o complexo mineiro foi ocupado pela população, que abriu ao público o primeiro Museu Mineiro de São Pedro da Cova, então instalado nos antigos escritórios da empresa. E foi graças ao trabalho da comunidade, com a ajuda do Centro Revolucionário Mineiro criado há 45 anos, que foi salvaguardado um arquivo com milhares de documentos, cerca de três mil fotografias e nove mil cadastros de homens e as mulheres que testemunham 170 anos de atividade mineira na freguesia.
Lusa Micaela Santos explicou à agência Lusa que através dessa documentação foi possível perceber quanto ganhavam mineiros e enchedores, bem como escolhedeiras e britadeiras – mulheres a quem, de joelhos, cabia selecionar com as mãos o melhor carvão.
A documentação revelou ainda que existiam meios de controlo disciplinar e que os filhos de mineiros eram obrigados a trabalhar aos 14 anos ou os pais perdiam a casa, uma vez que a Companhia das Minas era dona dos bairros de uma freguesia onde, ou se morria de acidente ou por silicose, enfermidade provocada pela inalação de pó de sílica, conhecido como ‘poeira de carvão’.

O arquivo reúne milhares de documentos, cerca de três mil fotografias e nove mil cadastros de homens e as mulheres, que testemunham 170 anos de atividade mineira na freguesia
A Casa da Malta
Atualmente o museu está instalado na Casa da Malta, que ficou ao abandono após o encerramento da Companhia das Minas de Carvão e até 1987, ano em que foi adquirido pela Junta de Freguesia de São Pedro da Cova.
Apesar do estado de degradação, tinha um interesse histórico e arquitetónico que justificou a recuperação integral e a reutilização como espaço museológico, “para não falar da carga emocional que lhe confere valor simbólico que importava não perder”, sublinha a publicação da junta de freguesia.
Ainda são visíveis marcas das paredes dos mais de 50 quartos que albergavam os mineiros numa casa que agora tem à sua frente a Zorra nº 53, um equipamento que serviu nas décadas anteriores a 1960 para transportar carvão entre São Pedro da Cova e Massarelos, no Porto. Chegou a estar sinalizada para abate pela Sociedade de Transportes Coletivos do Porto, mas foi devolvido à freguesia na década de 90 do século passado.
Em 2008 foi desenvolvido um plano de dinamização do espaço iniciado com a catalogação e inventariação dos objetos, a criação de um serviço educativo e documental, a reorganização da exposição permanente e a realização de vários eventos, como exposições temporárias, oficinas, formações, colóquios e palestras e concertos, entre outras.
O projecto elaborado pela Liga de Amigos do Museu Mineiro que identificou as necessidades e avançou com uma proposta de reabilitação do edifício e do conteúdo museológico.
O objetivo foi a reutilização do edifício sem alterações significativas da sua identidade, mais adequando as suas funções às disponibilidades existentes do que criando espaços adequados às novas funções. No piso inferir ganham destaque a área administrativa, o bar, a área de convívio e gabinete de apoio aos antigos operários mineiros, a biblioteca, e sanitários.
A maior área destinada ao museu localiza-se no piso superior, com área de exposição, uma zona de reuniões, um espaço destinado ao arquivo documental e uma memória do primitivo uso.

A coleção industrial, que transitou em 1989 para o atual Museu Mineiro, integra utensílios e ferramentas utilizados no desmonte, tratamento e expedição de carvão, além de maquetes e maquinaria
Uma vasta coleção
O acervo que começou a ser reunido a partir de 1975, depois do encerramento da empresa mineira e com a ocupação dos antigos escritórios pela população local, reúne hoje em dia um espólio considerável. “A principal coleção que o museu recebeu foi então reunida durante o Processo Revolucionário em Curso (PRC), e é composta por objetos e documentação industrial mineira. Esta foi a recolha que serviu de base à instalação do atual Museu Mineiro numa das antigas Casas da Malta”, recorda a publicação da Junta de Freguesia.
Para além da parte documental, a coleção inclui fósseis animais e vegetais, utensílios e ferramentas utilizados no desmonte, tratamento e expedição de carvão.
“Tem vindo a crescer qualitativamente através da aquisição e doação de objetos e a ser enriquecida através de património imaterial, conseguido a partir da recolha de testemunhos orais dos antigos trabalhadores mineiros”, congratula-se a Junta de Freguesia.
A coleção de fósseis foi doada por Firmino Jesus, morador do Lugar do Passal, e integra fósseis de trilobites, amonites, peixes e ouriços de vários pontos do mundo, como Espanha, Bélgica, França, China, EUA, Madagáscar, Marrocos. A coleção pode ser visitada, em exposição permanente da secção geológica do Museu, desde outubro de 2015.
Sobre o acervo documental da Companhia das Minas de Carvão de São Pedro da Cova, este é composto por cerca de oito mil processos de antigos operários, registos de acidentes de trabalho, doenças profissionais, da Caixa de Previdência do Pessoal, cartões do Sindicato de Mineiros, folhas de salários e pagamentos, registo de sansões disciplinares, mapas de produção, plantas técnicas, topográficas e de exploração, registos de indemnizações e fotografias.
Já a coleção industrial, que transitou em 1989 para o atual Museu Mineiro, integra utensílios e ferramentas utilizados no desmonte, tratamento e expedição de carvão, além de maquetes e maquinaria, “através dos quais é possível demonstrar e explicar não só a exploração subterrânea de carvão em São Pedro da Cova, mas também os processos de tratamento e expedição”. Esta coleção tem ainda uma vertente antropológica, já que retrata a vida das famílias mineiras, com a indumentária e objetos de uso quotidiano.
Entre 2009 até 2011, o museu recebeu cerca de quatro a cinco mil visitantes por ano, mas desde 2012 tem tido cerca de seis mil a sete mil visitantes anuais. “O público alvo é o escolar. Porquê? Quer porque temos como objetivo preservar a memória quer porque, reparámos, após a visita de uma escola, as crianças regressam e trazem familiares”, explicou Micaela Santos à Lusa. A atividade ‘Museu vai à escola’ traduz-se numa maleta pedagógica que é levada até às escolas, onde é contada a história do museu e de São Pedro da Cova.
E é também junto das crianças que Micaela Santos sente que há muita curiosidade sobre a atualidade da freguesia, sobre o facto de nas escombreiras das minas terem sido depositadas, em 2001/2002, toneladas de resíduos industriais perigosos provenientes da Siderurgia Nacional. “Até os miúdos mais pequenos questionam. E aqui, no museu, crianças e adultos perguntam-nos como foi possível e quando ficará tudo resolvido”, descreve.
Em causa, uma situação que a tutela garantiu, em novembro, que será resolvida no início deste ano, depois da remoção dos resíduos ter começado em outubro de 2014, mais de 10 anos depois do depósito, tendo terminado em maio do ano seguinte, com a retirada de 105.600 toneladas. Ficaram para uma segunda fase de remoção mais de 125 mil toneladas de resíduos.
Museu Mineiro – Casa da Malta
Rua de Vila Verde, 253 – São Pedro da Cova
(+351) 935 663 998
Pode ser visitado de terça-feira a sábado, das 10h às 12h30 e das 14h às 17h30. A entrada é gratuita.
GPS: 41.162351 / -8.511266
Ana Grácio Pinto, com agência Lusa
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