As festividades acontecem nas ruas e casas da aldeia onde os vizinhos se visitam. O ritual dos Caretos de Podence é milenar. Não se sabe exatamente quando começou, mas há a hipótese de terem surgido ainda antes dos romanos andarem por terras lusitanas. Desde 12 de dezembro são um Património Imaterial da Humanidade…
Na aldeia de Podence, concelho de Macedo de Cavaleiros, o Carnaval dura quatro dias ao ritmo das tropelias e diabruras dos Caretos elevados agora a património de todo o mundo.
A 12 de dezembro, a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), inscreveu os Caretos de Podence, de Trás-os-Montes, na lista de Património Imaterial da Humanidade. A decisão foi tomada em Bogotá, na Colômbia, pelo Comité Intergovernamental para a Proteção do Património Cultural Imaterial.
Sobre esta tradição, a Unesco escreve que “é uma prática social associada ao final do inverno e à chegada da primavera” e elogia o trabalho desenvolvido pela Associação Grupo de Caretos de Podence, que “desempenha um papel fundamental para garantir a viabilidade contínua do Carnaval”.
As festas de inverno do Carnaval de Podence foram a única candidatura selecionada pelo governo português para representar Portugal nesta sessão do Comitê Intergovernamental da UNESCO. Os mascarados passam a integrar agora a lista mundial onde Portugal já tem o Fado, o Cante Alentejano, a Dieta Mediterrânica, a Falcoaria e os Bonecos de Estremoz.
A Associação Portuguesa para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial (APSPI) diz ser um motivo de “regozijo” para os portugueses a inscrição dos Caretos de Podence na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade, pela UNESCO.
Mas não deixa de criticar o papel do Governo relativamente a estas tradições, afirmando que “carecem de ser melhor interpretadas, salvaguardadas e valorizadas, o que somente uma política verdadeiramente identificada com tais qualidades pode habilitar-se a promover”. Num comunicado, faz ainda votos para que “esta excelente notícia possa constituir um novo e definitivo estímulo para a tão urgente e indispensável mudança na política do património cultural imaterial em Portugal”. “É o que mais desejamos”, acrescenta.
Em nota, o Presidente da República felicitou a decisão, dizendo que permite “que o património português se mostre ao mundo na sua diversidade, fidelidade e empenho”. Marcelo Rebelo de Sousa já se comprometeu a passar o Entrudo Chocalheiro com os Caretos de Podence, em Macedo de Cavaleiros, no dia 23 de fevereiro. O Chefe de estado assumiu o compromisso a 16 de dezembro, no Palácio de Belém em Lisboa, no final de uma recepção à Associação do Grupo de Caretos de Podence.

A cabeça e o rosto dos caretos são escondidos atrás de máscaras rudimentares feitas de couro, madeira ou latão, pintadas de vermelho, preto, amarelo, ou verde e de onde sobressai o nariz pontiagudo
Herança recebida e mantida
As festividades acontecem nas ruas e casas da aldeia onde os vizinhos se visitam. O Entrudo Chocalheiro ocorre no fim de semana prolongado, com um desfile noturno na sede de concelho, Macedo de Cavaleiros, a marcar o arranque das festividades, normalmente num sábado.
No domingo a festa passa para a aldeia de Podence e caretos, com fatos de lá coloridos, máscaras de ferro e lata, um pau para amparar as tropelias e um cinto de chocalhos, andam pelas ruas. Entre a alegre confusão há as matrafonas, com quem os caretos não querem contas e a quem não chocalham, reservando as investiduras para as raparigas que apanham desprevenidas.
O Entrudo Chocalheiro prossegue na segunda-feira de Carnaval com os animados ‘casamentos’: no adro da igreja, os rapazes anunciam casamentos burlescos com dotes satíricos, anunciados por ‘embudes’ (funis que servem de altifalantes). Na terça-feira, os caretos voltam a sair à rua e vão de casa em casa e de adega em adega.
“Nós não inventámos nada, herdámos dos nossos antepassados e estamos cá para manter para as próximas gerações”, explicou à Lusa Luís Filipe Costa, um dos jovens da aldeia transmontana que faz parte da festa.
“Eu nasci careto”, afirma. Aos 34 anos é um dos nomes ligados à tradição que faz fatos de caretos, máscaras e outros objetivos ligados aos rituais que lhe inspiram um negócio na aldeia e uma tese de mestrado. “Noutros tempos, era o dia em que se permitia aos rapazes terem um contacto mais atrevido com as raparigas”, recordou.
Nos últimos anos, o número de visitantes tem vindo a aumentar, com cerca de 30 mil forasteiros no Entrudo de 2019. A aldeia ganha movimento e cresce economicamente, nomeadamente nas tasquinhas e restaurantes. “Queremos que esta tradição também faça com que cada vez pessoas não tenham de emigrar”, afirmou.

A tradição manda que quando um transmontano vestir um destes fatos de cores garridas e tapar a cara com uma das máscaras ‘demoníacas’, está autorizado a fazer de tudo, como um ‘diabo à solta’… Quer dizer, tudo não: estão proibidos de entrar na, porque lá não se querem encarnações do que é ‘malévolo’
Um ritual milenar
Este é um ritual milenar, que marca o início de um ciclo de fertilidade e vida na terra, mas não se sabe exatamente quando começou. Há a hipótese dos Caretos terem surgido ainda antes dos romanos andarem por terras lusitanas.
O evento marca duas datas – uma que festeja o fim do escuro e frio Inverno e outra que antecede a Quaresma. Em ambas há uma ligação próxima à chegada da Primavera, que tráz às povoações o período das sementeiras. As máscaras e os fatos berrantes dos caretos revelam isso, nem mais, nem menos. O regresso à cor e à vida. O regresso à irreverência da terra, que mostra os seus verdes descaradamente outra vez, depois de três meses em hibernação.
Quanto à indumentária, os Caretos vestem fatos de colchas franjados de lã vermelha, verde e amarela prolongadas num capuz e com uma cauda entrançada da mesma lã colorida. Na cintura e em diagonais no peito pendem chocalhos pesados, enquanto a cabeça e o rosto são escondidos atrás de máscaras rudimentares feitas de couro, madeira ou latão, pintadas de vermelho, preto, amarelo, ou verde e de onde sobressai o nariz pontiagudo. Da sua indumentária, faz também parte um pau que os apoia nas correrias e nos saltos.
E a tradição manda que quando um transmontano vestir um daqueles fatos de cores garridas e tapar a cara com uma daquelas máscaras ‘demoníacas’, está autorizado a fazer de tudo, como um ‘diabo à solta’… Quer dizer, tudo, tudo, não: estão proibidos de entrar na, porque lá não se querem encarnações do que é ‘malévolo’. Posto isso, correm pela aldeia, para cima e para baixo, à procura de mulheres:a chocalhar e com danças de cintura, fazem com que os chocalhos que carregam ‘batam’ nas mulheres.
O Entrudo Chocalheiro e os seus Caretos regressam entre 22 a 25 de fevereiro de 2020 a Podence e a Macedo de Cavaleiros, já com o estatuto de Património Imaterial da Humanidade.