Justina Ngoi César tem uma história de superações para contar, mas recusou ser apenas uma vítima da guerra civil em Angola.
Aos 37 anos, Justina Ngoi César é uma mulher cheia de vida e com a jovialidade que nem a explosão de uma conseguiu tirar.
Tinha apenas cinco anos quando pisou uma das milhares de minas antipessoais que foram espalhadas por todo o território angolano durante a guerra civil. E tinha 15 anos quando conheceu a princesa Diana no centro ortopédico do Huambo. Agora, 12 anos depois, espera ansiosa pela visita do filho de Diana, o príncipe Harry, que vai visitar o mesmo hospital, na próxima sexta-feira.
Justina recebeu os jornalistas e acompanhou-os, apoiada em duas muletas, pelas várias salas do hospital que conhece desde os cinco anos.
À jornalista da Agência Lusa conta que o dia em que pisou a mina foi um dia de azar. Como em muitos outros, Justina acompanhava a mãe, agricultora, “até à lavra”. Mas o dia não terminou como os outros.
Mesmo sabendo que era preferível passar em caminhos “mais abertos, sem capim”, mãe e filha, desejosas de encurtar a distância até aos campos, no bairro de Canhe, decidiram atalhar por um “caminho pequeno” e Justina cruzou-se com uma mina que explodiu.
“Perdi a perna logo ali”, recorda Justina que não se lembra de como foi socorrida, nem como chegou ao hospital. Sabe apenas que o campo era longe de casa e que a partir daí a sua vida mudou.
“Fui crescendo, comecei a frequentar o centro ortopédico… usei muito tempo muletas, até me habituar, e depois comecei a usar a prótese. E a partir daí foi prótese, muleta, prótese, muleta. Foi-me habituando”, recordou à Lusa.
E foi neste hospital, agora conhecido como centro de reabilitação física Dr. António Agostinho Neto, que dez anos depois de ter sofrido a amputação, os seus caminhos se cruzaram com uma princesa britânica, em janeiro de 1997.
“Disseram-nos: amanhã teremos uma visita”
Diana de Gales estava de visita a Angola no âmbito de uma campanha pelo fim ao flagelo das minas terrestres e Justina foi esperá-la ao aeroporto com outras 15 crianças mutiladas: “Disseram-nos: amanhã teremos uma visita – que era a princesa Diana – que tem o sonho de ajudar as vítimas de minas e será a madrinha dos vossos problemas. E nós fomos”, conta.
Recorda que a princesa “pegou ao colo uma criança que sofria de meningite, deu-nos dois beijinhos, pegou-nos assim na testa”, mas salienta que, na altura, não se apercebeu do impacto que teve aquele momento.
“Naquele tempo, eu achei que foi uma coisa normal, como alguém que vem nos visitar e trazer alguma solução para os nossos problemas. Depois mais tarde, quando foi crescendo, já depois do falecimento dela é que comecei a entender quem foi a princesa Diana, que era alguém que tinha o projeto de trabalhar com vítimas de minas”, elogiou a angolana, lamentando que a princesa não tenha conseguido alcançar os seus objetivos “da forma que queria” porque morreu sete meses mais tarde.
Apesar do triste acidente, Justina nunca deixou de ter uma vida normal. Acarinhada na escola, participou em 2006, em Luanda, num concurso de ‘misses’ para vítimas das minas, e levou para casa dois prémios: ‘Miss Simpatia’ e ‘Miss Fotogenia’).
Se na altura se mostrou cética em relação ao evento e com receio de desfilar no palco, com muletas, mostra agora com orgulho o diploma e diz que o concurso levantou “ainda mais a autoestima”, permitindo-lhe mostrar que pode fazer “o que qualquer mulher faz”, incluindo “passar na ‘passerele’”.
Justina Ngoi César trabalha no gabinete jurídico do governo provincial do Huambo, estuda informática à noite, está a tirar a carta de condução e espera fazer exame no final de novembro. Falta-lhe ainda juntar dinheiro suficiente para comprar um carro adaptado e ultrapassar o que diz ser a sua principal dificuldade: as deslocações. “Já estou a conduzir o carro automático, mas adquirir um carro está difícil”, desabafa.
De resto, faz “tudo sozinha”, e recusa, com um sorriso amável, a solicitude desnecessária de quem vem abrir a porta para lhe dar passagem: diz um simpático, mas firme, “não é preciso”.
Dificuldade em arranjar próteses
Já usou muitas próteses e habituou-se a andar de muletas depois de ter os três filhos, porque está à espera que chegue o material necessário para substituir a prótese antiga, que deixou de lhe servir.
“A minha prótese é muito delicada e aqui em Angola e difícil arranjar o material. O meu técnico tem como fazer a prótese, mas sem o material não é possível”, resigna-se.
Apesar de estar mais habituada às muletas, os braços também se cansam e, às vezes, chega ao fim do dia com lágrimas nos olhos devido “à canseira” e ao esforço de sustentar o peso. Mas a adaptação à prótese também não é fácil.
“É doloroso”, admite, explicando que vai demorar cerca de um mês a adaptar-se ao membro substituto, mesmo que treine todos os dias e que “só o tire na hora de dormir”.
Na próxima sexta-feira Justina vai estar no hospital para receber o Príncipe Harry e assume ter alguma ansiedade.
“Estou muito ansiosa em conhecê-lo. Sendo o filho da Princesa Diana é muito importante para nós. Quem sabe traz uma nova proposta para nós, para termos uma melhoria nas próteses e mais material para o nosso setor ortopédico”, sonha Justina.
O objetivo da princesa Diana de banir as minas antipessoais foi cumprido no final de 1997, já depois da sua morte, com a assinatura da Convenção sobre a Proibição do Uso, Armazenamento, Produção e Transferência de Minas Antipessoais, conhecida como Convenção de Ottawa: São signatários 157 países, entre os quais Angola
Estima-se que existam cerca de 60 mil angolanos que ficaram mutilados devido ao rebentamento de minas de guerra, das quais cerca de 40% são mulheres.