Conheci pessoalmente e entrevistei, no lançamento do livro, em Paris, em 2016, do escritor Daniel Bastos – “Gérald Bloncourt – O olhar de compromisso com os filhos dos Grandes Descobridores” o grande fotojornalista que nasceu no Haiti em 1926, mas foi expulso no final da década de 1940 por razões políticas e passou a residir em Paris onde iniciou uma carreira de fotojornalista. Há anos que admirava as suas fotos, pela mensagem que transmitiam, o grito de alerta, para a situação em que viviam tantos milhares de portugueses, às portas de Paris e cujas imagens publicadas tiveram mais força que milhentos artigos redigidos.
Foi um prazer conhecer pessoalmente o seu autor. Nesse mesmo ano em Champigny, nas comemorações oficiais do Dia de Portugal, que pela primeira vez se estenderam a França, via à frente da objectiva, esse grande senhor do fotojornalismo, a ser condecorado com o grau de comendador da Ordem do Infante D. Henrique, pelo Presidente da República- Marcelo Rebelo de Sousa. Em Portugal tive também o prazer de numa ou noutra cerimónia estar e falar com este grande senhor. Partiu hoje dia 29 de OUTUBRO 2018.
Deixou uma obra e foi um dos fotógrafos que mais retratou os bairros de lata portugueses – Gérald Bloncourt.
Foi ao colaborar com jornais de esquerda como “L’Humanité” e “La Vie Ouvrière”, entre outros, que Bloncourt descobriu os bairros de lata portugueses nos subúrbios da capital francesa: “Era uma forma de escravatura moderna. Havia lama no inverno, era frio. Eram barracas feitas com tábuas, bocados de chapa, Era uma vida difícil, muito rude. Os homens iam trabalhar para as obras, as mulheres ficavam com as crianças”, lembrou o fotójornalista.
Uma das suas fotos das tantas que retratou da emigração portuguesa. Aqui na Gare de Austerlitz
O primeiro “bidonville” que o repórter fotografou foi o de Champigny-sur-Marne, nos arredores de Paris, mas a abordagem não foi fácil: “Quatro portugueses viram-me e apanharam-me. Pensavam que eu era um polícia. Prenderam-me e meteram-me lá num edifício feito de tábuas. Havia lama por fora, mas lá dentro era asseado e tínhamos que tirar os sapatos.”
Enquanto o fotógrafo aguardava, descalço, os portugueses “foram buscar o chefe”: “Quando o chefe chegou, disse-me “Que estás aqui a fazer?” Eu conhecia-o. Era um militante sindicalista da Renault que era o chefe do bairro de lata. Abraçámo-nos, bebemos uma garrafa de Porto e depois pude voltar!”, recordou.
Os relatos que ouvia nos bairros de lata, levaram Gérald Bloncourt a querer descobrir Portugal e a fotografar as rotas clandestinas dos que tentavam fugir à ditadura, num percurso que ficou conhecido como “O Salto” ou ” Passaporte de Coelho”.
“Conheci resistentes contra Salazar e – como eu próprio fui resistente contra a ditadura do meu país – quis lá ir. Fui a Portugal na época de Salazar, fiz toda a rota da emigração, de Lisboa passando pelo Porto, Chaves e aquela região. Fui mesmo detido pela PIDE uma vez. Eu tinha metido rolos para eles na mala e eles encontraram-nos. Mas eu tinha colado nas costas um par de meias com os rolos de fotografias importantes que consegui salvar e que estão hoje publicadas e expostas”, contou.
Anos depois, o fotógrafo regressou a Portugal, onde aterrou nas vésperas do 1.º de maio de 1974 para “tentar fazer algumas fotos” perante “mais de um milhão de pessoas com cravos e um povo em júbilo”.
“Como estava em contacto com eles [os emigrantes portugueses], avisaram-me da Revolução dos Cravos. Fui logo a Portugal de avião, encontrei um lugar e estava no mesmo avião que Cunhal. Os camaradas dele cantavam e batiam com os pés e a hospedeira foi-lhes pedir para parar. Vivi a revolução dos cravos. Foi uma coisa incrível”, descreveu.
As imagens do fotógrafo integraram várias exposições em Portugal e França, fazendo parte do arquivo da Cité nationale de l’histoire de l’immigration, em Paris, e do Museu das Migrações e das Comunidades de Fafe.
Guardo com orgulho e autografado pelo autor e pelo fotojornalista, o livro da obra, concebida e realizada pelo historiador português Daniel Bastos a partir do espólio de Gérald Bloncourt. Neste livro as imagens que valem por mil palavras, praticamente inéditas que o fotógrafo francês de origem haitiana realizou durante a sua primeira viagem a Portugal na década de 1960, onde retratou o quotidiano das cidades de Lisboa, Porto e Chaves, assim como as da viagem a “salto” que fez com emigrantes portugueses além Pirenéus, e as das comemorações do 1.º de Maio de 1974 na capital portuguesa que permanecem como a maior manifestação popular da história portuguesa.
Segundo Daniel Bastos, a concretização deste projeto sobre o olhar comprometido de Gérald Bloncourt com os portugueses, que o fotógrafo identifica desde os bancos da instrução primária como os descendentes dos grandes descobridores do mundo, constitui “um justo reconhecimento aos protagonistas anónimos da história portuguesa que lutaram aquém e além-fronteiras pelo direito a uma vida melhor e à liberdade. Todos eles representados por uma personalidade ímpar que durante mais de vinte anos escreveu com luz a vida dos portugueses em França e em Portugal”.
Para Eduardo Lourenço, consagrado intelectual português de grande reputação internacional que assina o prefácio do livro, em pleno drama da nossa emigração de europeus, os portugueses “subiram do lugar sem luz como hoje milhares de outros emigrantes atravessam os vários Mediterrânios da vida para o tombadilho onde o ar do largo lhes restitui ao mesmo tempo a esperança e a dignidade”. Tendo nos anos 60 a sorte de terem tido “como companhia o sorriso aberto de marinheiro de Gérald Bloncourt. E a sua máquina para os lembrar para sempre nos retratos com que os salvou do esquecimento”.
Gérald Bloncourt” (2010), foi no início deste ano condecorado cavaleiro da Ordem Nacional da Legião de Honra francesa, a mais alta distinção civil de França.
Que descanse em paz, quem usou a máquina fotográfica ao longo da sua vida, como um modo de vida, ao lado das injustiças sociais.
Faria 92 anos de idade dia 4 de novembro, já que nasceu em 1926.
As cerimónias fúnebre vão ter lugar no cemitério do Père Lachaise, onde será cremado na próxima segunda-feira, dia 5 de novembro. A família pede, dado ser sua vontade “Nem flores, nem coroas”e prefere que sejam feitos donativos à associação Haïti Futur.
ANTÓNIO FREITAS