Maria Severa é, talvez, o primeiro ícone fadista em Portugal.
Viveu apenas 26 anos – de 1820 a 1846 -, mas Maria Severa Onofriana, de seu nome completo, revolucionou a Lisboa do seu tempo, mas se grande foi a fama na vida de Lisboa, maior foi depois de morta.
O escritor Júlio Dantas foi um dos responsáveis desta aura de fama pelo seu romance e, posteriormente, pela peça “A Severa”, que mais tarde Leitão de Barros adaptou ao cinema, tendo sido o primeiro filme sonoro português. Protagonizado por Dina Tereza, o filme estreou em junho de 1931 no Teatro S. Luiz, onde esteve em cartaz durante seis meses e foi visto por 200.000 espetadores.
A personagem do romance, a partir da qual se construiu o mito da Severa não corresponde totalmente à vida real da fadista que foi, entre outros, amante do último Conde de Vimioso. A atriz Palmira Bastos que chegou a encarnar no palco a personagem da Severa afirmou que esta era “a dama das camélias portuguesa”.
Maria Severa distinguiu-se pelo feitio “briguento” que herdara da mãe, uma célebre e temida prostituta da Mouraria, Maria Barbuda, mas essencialmente pela sua voz e a forma de cantar, além da esbelta figura. Era “alta, delgada mas não magra, seio opulento, pele muito branca, olhos pretos, bastos cabelos negros, sobrancelhas carregadas, boca pequenina muito vermelha, belos dentes, cintura fina e o pé pequeno”, assim a descreveu um contemporâneo.
O pintor Francisco Metrass (1825-1861) ainda esboçou o seu retrato, sem nunca o ter terminado.
Severa viveu em pleno advento do liberalismo quando se começou a sentir o final do Antigo Regime absolutista e terra-tenente. Os portugueses habituados ao poder absoluto do Rei conheciam agora um texto fundamental, a Constituição que distribuía poderes, garantia liberdades e direitos. Um período de reformas e revoltas populares, onde a mulher viria o seu papel social ampliado.
O ministro Mouzinho da Silveira proclamava então que era necessário “fazer entrar a Nação no Grémio da Europa”. Queria-se um Portugal civilizado, moderno, europeu. A vida de Severa reflete também estas contradições.
Nascida nas barracas dos Anjos, em Lisboa, no ano de 1820, como atesta a sua certidão de batismo, filha de Severo Manuel e Ana Gertrudes, mudou-se para a Madragoa, bairro de marujos e meliantes na época, onde a mãe tinha uma taberna na Rua Vicente Borga. Da Madragoa, sempre acompanhada pela mãe, mudou-se para o Bairro Alto e daqui para a Mouraria onde morreu, com uma ligeira passagem pelo palácio do Conde Vimioso, ao Campo Grande.
Afirmam os seus contemporâneos, que deixaram escritas memórias sobre a esbelta Severa, que além de cantar o fado, acompanhava-se a si própria, numa guitarra de cravelhas, e até escrevia os poemas que cantava.
Um companheiro seu, Manuel Botas, descreve a sua peculiar forma de cantar: “Às vezes guardava-se melancólica, nesses momentos cantava com tal sentimento que nos causava funda impressão. Ouvia-a numa ocasião, no Café do Bola, à Guia. Era um fado dolente, cantando a vida duras das que não têm lar nem alegria, sentia bem o que cantava porque tinha os olhos maranhados de lágrimas”.
O escritor Augusto Palmeirim quando a visitou na sua casa do Bairro Alto frisa que numa “mesa de jogo estava pousada uma guitarra, a companheira inseparável dos seus triunfos”.
O escritor Raimundo Bulhão Pato (1828-1912), que a conheceu, confidenciou certa noite a um amigo: “A pobre rapariga foi uma fadista interessantíssima, como nunca a Mouraria tornará a ter”.
Severa, do qual não existe nenhum registo de voz, diz-se ter sido a primeira pessoa a cantar os fados na rua e a elevar os seus problemas representando o povo, e a razão pela qual o fado se propagou até ao nível de entidade nacional que hoje é. Morreu pobre e abandonada, num miserável bordel da Rua do Capelão, a 30 de Novembro de 1846.
Consta que as suas últimas palavras terão sido: “Morro sem nunca ter vivido” – tinha 26 anos.
Foi sepultada em vala comum, sem caixão, conforme era seu desejo expresso nos seus próprios versos que cantava:
Tenho vida amargurada
Ai que destino infeliz!
Mas se sou tão desgraçada
Não fui eu que assim o quis.
Quando eu morrer, raparigas,
Não tenham pesar algum
E ao som das vossas cantigas
Lancem-me na vala comum.
Foi após a sua morte que ela se tornou, de facto, um símbolo do Fado.
Na verdade, desde então jamais os autores de letras de fados deixaram de a celebrar, sugestionados pela lenda desta mulher.
(Fundação Manuel Simões e CM Lisboa)