Os conflitos de interesses na área da saúde

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OPINIÃO

 

António Arnaut bateu-se literalmente até ao fim da sua vida pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS). Nos últimos anos pressentiu que o sistema tinha sido deliberadamente desequilibrado a favor de prestadores privados e que a provisão pública, de acesso universal e tendencialmente gratuita, estava em perigo.
Sem hesitações esteve na primeira linha dos que denunciaram esse descarrilamento. Arnaut tinha razão em estar preocupado.


A Direita apôs-se ao SNS desde sempre – o PSD e o CDS votaram contra a sua aprovação – com o pretexto de que assentava numa filosofia coletivista que transformaria todos os profissionais de saúde em funcionários.
Nunca teve coragem para assumir abertamente o objetivo de privatizar o sistema de saúde, mas jamais se eximiu, a forma reptícia, trabalhar nesse sentido, contando em várias ocasiões com a conivência de responsáveis do partido de António Arnaut.
Em todas as oportunidades foram reduzindo o financiamento, incapacitaram serviços e lançaram suspeição sobre o empenho dos seus trabalhadores. Depois, constatando que o serviço não dá as respostas necessárias, fomentaram o protesto e subcontrataram no privado os serviços que o público deixou de ter capacidade de prestar.
Ao mesmo tempo o setor privado avançou estratégias de atração de profissionais descontentes com as insuficiências e as cada vez piores condições de trabalho no SNS. Por vezes, a acumulação de dívidas a subcontratados foi instrumental.
A relação médico-paciente (e também a de outros profissionais, como os enfermeiros) caracteriza-se por uma vincada assimetria. O médico sabe sempre muito mais acerca da doença do paciente, e da forma de a curar, do que o paciente que a ele se dirige. Se a relação fosse puramente comercial, isto é, se o médico e outros profissionais do setor tivessem como objetivo obter uma vantagem monetária poderiam usar a assimetria da relação a seu favor, contra os interesses materiais do paciente ou até contra a sua saúde. Por isso mesmo, a relação nunca foi pensada como uma relação meramente comercial.
O que hoje está em causa com a privatização da saúde não é um regresso ao tempo em que a medicina era sobretudo uma profissão liberal. Estamos agora na era da industrialização da saúde, em que os profissionais se convertem em assalariados de empresas, deixando de estar sujeitos aos ditames da sua consciência e da deontologia profissional.
As organizações para quem trabalham são empresas capitalistas que têm como objetivo remunerar, o mais possível, os capitais dos eus proprietários. Existe um enorme potencial de descoincidência de motivações e interesses entre os compromissos deontológicos dos profissionais de saúde e o objetivo de lucro das empresas. E o drama que o país está a viver é que os pressupostos gestionários do privado se estão a impor também no setor público.
O diminuto tempo para consultas, a subcontratação de médicos, enfermeiros e outros técnicos, a destruição de condições para a constituição e estabilização de equipas multidisciplinares, a falta de capacitação de trabalhadores com funções auxiliares, bem como as baixas remunerações de muitos profissionais são alguns dos problemas que se acumulam no SNS.
Sem dúvida que no SNS público também existem conflitos de interesses. Mas há uma grande diferença entre o SNS e a indústria da saúde. O SNS não é um negócio orientado para extrair dividendos financeiros de situações de carência e aflição.

Orlando Fernandes

JORNALISTA

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