O Tribunal Constitucional chumbou a regra do anonimato de dadores da Lei de Procriação Medicamente Assistida, por considerar que impõe “uma restrição desnecessária aos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade das pessoas nascidas” através destas técnicas. O juiz Eurico Gomes, que entretanto se demitiu do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida em protesto com a decisão, foi a voz mais ativa contra esta decisão referindo que “um conjunto de pessoas está a contribuir para o aumento da infelicidade de outros seres humanos”. A Associação Portuguesa de Fertilidade mostrou-se incrédula com o chumbo e deixou o aviso: “sem anonimato deixará de haver dadores” quando há “milhares de casais em Portugal que necessitam da doação de gâmetas para serem pais”.
O Tribunal Constitucional chumbou a regra do anonimato de dadores da Lei de Procriação Medicamente Assistida, por considerar que esta impõe “uma restrição desnecessária aos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade das pessoas nascidas” através destas técnicas.
O acórdão do Tribunal Constitucional (TC) surgiu após um pedido de fiscalização da constitucionalidade de alguns aspetos da Lei da Procriação Medicamente Assistida (PMA), formulad02o por um grupo de deputados à Assembleia da República.0228
Em relação à regra do anonimato de dadores e da própria gestante de substituição, o Tribunal Constitucional reconheceu que “a mesma não afronta a dignidade da pessoa humana e (…) considerou, atenta também a importância crescente que vem sendo atribuída ao conhecimento das próprias origens, que a opção seguida pelo legislador (…) de estabelecer como regra, ainda que não absoluta, o anonimato dos dadores no caso da procriação heteróloga e, bem assim, o anonimato das gestantes de substituição – mas no caso destas, como regra absoluta – merece censura constitucional”.
Esta censura constitucional deve-se ao facto de a regra “impor uma restrição desnecessária aos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade das pessoas nascidas em consequência de processos de Procriação Medicamente Assistida com recurso a dádiva de gâmetas ou embriões, incluindo nas situações de gestação de substituição”.
Em fevereiro do ano passado, os partidos PSD e CDS-PP anunciaram o pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade da procriação medicamente assistida, por considerarem que estava a colocar em causa os direitos à identidade pessoal e genética, entre outros princípios fundamentais.
Em relação ao acesso à procriação medicamente assistida por parte de todas as mulheres – independentemente de condição médica de infertilidade, do estado civil ou orientação sexual – foi questionada a conformidade à Constituição da República Portuguesa de se estabelecer “como regra o anonimato dos dadores e como exceção a possibilidade de conhecimento da sua identidade”.
Neste documento é ainda referenciado que sobre o direito ao conhecimento da identidade genética.
Os deputados-subscritores do pedido de fiscalização entendiam que, por força da lei da adoção, era “também violado o princípio da igualdade perante a lei, porquanto só uma parte da população portuguesa – a que não nasça por recurso a técnicas de PMA – tem direito ao conhecimento da sua identidade genética, dele ficando excluídos os que assim nasçam”.
Fim do anonimato ameaça dadores de esperma e óvulos. Alterações não irão ser aplicadas nas situações em que já tenham sido iniciados os processos terapêuticos
As declarações de inconstitucionalidade do TC não se irão aplicar nas situações em que já tenham sido iniciados os processos terapêuticos, em execução de contratos já autorizados pelo CNPMA.
A lei que regula o acesso à gestação de substituição nos casos de ausência de útero, de lesão ou de doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez, foi publicada em Diário da República em 22 de agosto de 2016.
A legislação foi publicada depois de introduzidas alterações ao diploma inicial, vetado dois meses antes pelo Presidente da República, que o devolveu ao parlamento para que a lei fosse melhorada e incluísse “as condições importantes” defendidas pelo Conselho de Ética.
Na altura, Marcelo Rebelo de Sousa justificou a decisão com o argumento de que faltava na lei “afirmar de forma mais clara o interesse superior da criança ou a necessidade de inform ação cabal a todos os interessados ou permitir, a quem vai ter a responsabilidade de funcionar como maternidade de substituição, que possa repensar até ao momento do parto quanto ao seu consentimento”.
A lei de gestação de substituição foi aprovada, com alterações após o veto presidencial, em 20 de julho de 2016, com os votos favoráveis do BE (partido autor da iniciativa legislativa), PS, PEV, PAN e 20 deputados do PSD, votos contra da maioria dos deputados do PSD, do PCP, do CDS-PP e de dois deputados do PS e a abstenção de oito deputados sociais-democratas.
As alterações introduzidas pelo BE estabelecem essencialmente a necessidade de um contrato escrito entre as partes, “que deve ter obrigatoriamente disposições sobre situações de malformação do feto ou em que seja necessário recorrer à interrupção voluntária da gravidez”.
Associação de Fertilidade deixa alerta: casais inférteis vão ser prejudicados
A Associação Portuguesa de Fertilidade (APF) alertou para o impacto do “chumbo” do Tribunal Constitucional a algumas regras da lei da Procriação Medicamente Assistida (PMA), que poderá levar ao fim da doação de gâmetas.
“Se o anonimato deixar de existir, deixará de haver dadores”, lê-se no comunicado da APF a propósito do chumbo do TC a algumas normas da lei da PMA, nomeadamente à gestação da substituição.
Para a APF, no caso da gestação de substituição, “esta situação roça o ridículo, por dois motivos: em muitos casos o casal beneficiário dará ambos os gâmetas (feminino e masculino) e, se tal não acontecer, a lei prevê a obrigatoriedade de pelo menos um dos elementos do casal doar os seus gâmetas”.
“Qual é o sentido de se focar esta questão agora, já que na maioria dos casos nem se colocará?”, questiona a associação.
Para a presidente da APF, Cláudia Vieira, este chumbo é “inadmissível”. “É incompreensível que uma lei que já foi aprovada, que passou por todas as instâncias e que já estava em pleno funcionamento volte agora para trás. Basta colocarem-se na pele destes casais e perceberem o impacto emocional que um volte-face destes tem nas suas vidas. É algo de verdadeiramente inimaginável”, reforçou.
Juiz Eurico Reis demite-se
O juiz desembargador Eurico Reis, do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, considerou que o chumbo do Tribunal Constitucional de várias regras da lei da PMA espelha a visão dos juízes que o compõem e vai trazer mais infelicidade.
Numa primeira interpretação ao chumbo do Tribunal Constitucional (TC) à lei de gestação de substituição e de alguns aspetos da lei de Procriação Medicamente Assistida (PMA), como o anonimato dos dadores de gâmetas, Eurico Reis alertou para as consequências desta decisão.
“Vai deixar de haver dadores, vamos gastar rios de dinheiro a importar gâmetas ou então para a PMA toda, ficando a funcionar apenas para aqueles para quem ainda é possível realizar tratamentos com material dos próprios”, disse à Lusa.
Eurico Reis, que presidiu ao CNPMA desde a sua criação, há dez anos, tendo sido substituído recentemente nestas funções por Carla Rodrigues, começou por comentar a decisão, ressalvando que primeiro tinha que ler antes de comentar com mais pormenor esta decisão.
Contudo, referiu que o TC se desdiz, pois não levantou problemas em relação ao anonimato dos dadores, plasmado na lei da PMA, de 2006, levantando-os agora.
Em relação à gestação de substituição, o juiz desembargador considera que esta posição é “um ataque” a uma “forma muito equilibrada que o legislador encontrou de dar felicidade às pessoas”. “Um conjunto de pessoas está a contribuir para o aumento da infelicidade de outros seres humanos”, disse.
Recordando que são precisas entidades como os tribunais para que a sociedade funcione de forma organizada, Eurico Reis alerta para uma questão: “Quem é que guarda os guardas, principalmente os guardas que ninguém guarda?”.
Sobre o impacto desta decisão, Eurico Reis considera também que os novos pedidos não irão ser sequer analisados. “À partida, cai a lei, cai a regulamentação, caem as decisões do conselho. Cai tudo, como se nunca tivesse acontecido”, disse.
Depois, o juiz Eurico Reis apresentou mesmo ao presidente da Assembleia da República a demissão do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), em protesto contra o acórdão do Tribunal Constitucional sobre a lei da PMA.
De acordo com Eurico Reis, a demissão das funções que ocupa neste regulador, do qual faz parte desde a sua criação, em 2006, é “uma forma de protesto contra o acórdão do TC, nomeadamente as suas decisões e a fundamentação das mesmas”.