Em Portugal, as medidas de austeridade introduzidas em decorrência da crise económica e financeira, restringiram os direitos das pessoas com deficiência
Foi divulgado hoje, 22 de fevereiro, o relatório ‘O Estado dos Direitos Humanos no Mundo’ 2016/17, elaborado pela Amnistia Internacional (AI). Resume a situação mundial dos direitos das populações em 159 países e territórios, alerta para “o sofrimento suportado por muitos, seja por causa de conflitos, da deslocação, da discriminação ou da repressão”, traça os desafios e expectativas para este ano e ressalva que, em algumas áreas, houve progressos na salvaguarda e proteção dos direitos humanos.
Nas mais de 400 páginas do documento, duas são dedicadas à situação em Portugal, com a AI a assinalar as conquistas e as falhas. Em 2016, as medidas de austeridade introduzidas em Portugal, em decorrência da crise económica e financeira, restringiram os direitos das pessoas com deficiência. Houve ainda relatos de maus-tratos nas prisões e as condições de encarceramento inadequadas. Discriminação contra os ciganos continuou inabalável. E ainda “persiste a discriminação das comunidades ciganas”.
Menos apoios a pessoas com deficiência
Em abril de 2016, o Comitê das Nações Unidas para os Direitos das Pessoas com Deficiência sugeriu a Portugal que revisse as medidas de austeridade que tinham “reduzido os serviços prestados às pessoas com deficiência” e levado “muitas delas à pobreza ou à pobreza extrema”, lê-se no relatório. “O Comitê manifestou preocupação sobre cortes nos recursos para a educação inclusiva para crianças com deficiência e apoio às suas famílias. Essas medidas tiveram efeitos particularmente negativos sobre mulheres cuidadoras (apoio a pessoas que encontram dificuldades para desempenhar as suas atividades) que, na maioria dos casos, tratavam de crianças com deficiência”, revela a AI no documento.
O documento alerta ainda para o facto de 2016 Portugal ter continuado “a falhar na garantia de que os crimes de ódio” fossem proibidos por lei e não ter ainda criado um “sistema nacional de dados para os crimes de ódio”. Outro destaque negativo foi a persistência da “discriminação das comunidades ciganas”. Segundo o relatório, em junho do ano passado a Comissão Europeia Contra o Racismo e a Intolerância relatava que Portugal não tinha implementado na totalidade as medidas, recomendadas em 2013, de combate ao racismo e à discriminação em relação às comunidades ciganas, “especialmente no que se refere à recolha de dados e à simplificação dos procedimentos nas informações de casos de discriminação reportados ao Alto Comissário para as Migrações”.
Maus tratos e presos
No documento assinala-se no mesmo ano, em Portugal, “ocorreram denúncias de uso desnecessário ou excessivo da força pelos agentes encarregues de aplicar a lei”. A título de exemplo, refere o relatório de uma organização não-governamental portuguesa, divulgado em outubro último, segundo o qual 13 presos foram espancados por guardas prisionais durante a inspeção das respetivas celas na Prisão da Carregueira, em Lisboa. “Pelo menos três deles precisaram de receber tratamento hospitalar”, lê-se no documento da AI, onde se acrescenta que as condições prisionais permaneceram inadequadas, sendo “degradantes” em algumas prisões. “Há “falta de higiene, má qualidade da comida, falta de cuidados médicos e de acesso a medicamentos”, alerta ainda.
No capítulo da violência contra as mulheres, o relatório da AI cita números divulgados em novembro último pela UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta), que dão conta de 22 assassinatos e 23 tentativas de homicidio de mulheres ocorridos em Portugal no ano passado.
Progressos
Mas nem tudo é negativo nos elementos sobre Portugal divulgados no ‘O Estado dos Direitos Humanos no Mundo’ 2016/17. O relatório destaca as novas leis sobre direitos das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais, lembrando que em fevereiro do ano passado o Parlamento anulou um veto presidencial à lei que concede aos casais do mesmo sexo o direito de adotar crianças. A lei entrou em vigor em março.
O documento refere ainda as leis sobre tratamentos reprodutivos e a violência contra mulheres e raparigas. Recorda que, em novembro, o governo anunciou planos para isentar do pagamento de custas judiciais, as vítimas de assédio sexual, violação, mutilação genital feminina, escravidão e tráfico humano.
Sobre os “direitos reprodutivos”, destaca a lei aprovada em fevereiro do ano passado que alterou a legislação sobre o acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva. “A nova lei eliminou a obrigatoriedade de aconselhamento psicológico e social, como condição ao direito das mulheres ao aborto assistido. Em maio, foi adotada nova legislação que permite a todas as mulheres o acesso às Técnicas de Reprodução Assistida (TRA) – incluindo fertilização in vitro e outros métodos – independentemente do seu estado civil ou orientação sexual”, destaca o texto do relatório.
2016: um mundo “escuro” e “instável”
A nível mundial, o relatório da Amnistia Internacional alerta que as “políticas de demonização” estão a alimentar a divisão e o medo por parte de países poderosos que fizeram recuos preocupantes nos compromissos dos direitos humanos. “É difícil haver uma narrativa clara sobre o que aconteceu no ano passado”, diz o secretário-geral da AI, Salil Shetty, no prefácio do relatório. “Para milhões, 2016 foi um ano de implacável miséria e medo, enquanto governos e grupos armados abusavam dos direitos humanos numa multiplicidade de maneiras”, lamenta, referindo que grande parte da cidade mais populosa da Síria, Aleppo, foi atingida por ataques aéreos e combates de rua, ao mesmo tempo que continuou o “cruel ataque” contra civis no Iêmen e agravou-se a situação do povo Rohingya em Mianmar. Os massacres em massa no Sudão do Sul, as “repressões preversas” de dissidentes na Turquia e no Bahrein e o surgimento de discursos de ódio em grandes partes da Europa e dos EUA, são outros exemplos citados por Salil Shetty para afirmar que “em 2016, o mundo tornou-se mais escuro e mais instável”.
Quanto às perspetivas para 2017, a AI sublinha que neste início de ano, o mundo continua a sentir-se “instável e o medo do futuro prolifera”. Mas a organização defende que é nestes tempos “que são necessárias vozes corajosas e heróis comuns que se levantarão contra a injustiça e a repressão”. “Ninguém pode assumir (a responsabilidade por) todo o mundo, mas todos podem mudar seu próprio mundo. Todos podem assumir uma posição contra a desumanização, agindo localmente para reconhecer a dignidade e os direitos iguais e inalienáveis de todos e, assim, lançar as bases da liberdade e da justiça no mundo”, defende Salil Shetty. “2017 precisa de heróis dos direitos humanos”, conclui.
Ana Grácio Pinto