Duas embarcações e um antigo cais são os achados mais raros e uma prova da ligação de Lisboa ao rio Tejo…
Desde setembro, quando começaram as escavações, já foram retirados 900 contentores de achados, na sua maioria materiais de construção, como telhas, tijolos e tijoleira, mas também cerâmica e porcelana. E o Projeto de Requalificação Cais do Sodré, Campo das Cebolas, Rua do Arsenal e Rua da Alfândega permitiu ainda descobrir duas embarcações e um antigo cais, que provam a importância da ligação de Lisboa ao seu rio.
Os trabalhos têm por objetivo “promover novas condições de utilização pública dos espaços da frente ribeirinha da Baixa Pombalina, implicando uma profunda alteração no sistema de circulação desta zona central e histórica da cidade, nomeadamente através do reordenamento da circulação rodoviária, da valorização do sistema de transportes públicos e da preferência dada aos modos suaves com relevância para a circulação e uso pedonal do espaço público”, explica uma nota divulgada pela EMEL (Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento).
Entre abril e junho, foram descobertos um conjunto de muros e antigos pavimentos construídos após o terramoto de 1755. Naquela altura, o atual Campo das Cebolas denominava-se Ribeira Velha e tinha um papel predominante como mercado da cidade, recebendo uma série de produtos que abasteciam Lisboa através do rio Tejo.
Na zona nascente do local, os trabalhos permitiram descobrir uma parte de um antigo paredão de cais, na área historicamente referenciada como Cais de Santarém. Foram ainda encontradas uma série de estruturas correspondentes a um quarteirão de edifícios e uma rua também construídos após 1755 e visíveis na cartografia oitocentista. Em outros locais de escavação, os arqueólogos encontraram cerâmica de importação chinesa e italiana.
A última fase de trabalhos arqueológicos iniciou-se em setembro e entre os vestígios detetados um foi considerado “interessante, e curioso”: duas mós de pedra, de grande dimensão, encontradas sobre o aterro do século XVII/XVIII da Ribeira. Na escavação da área junto à Casa dos Bicos, foram identificadas peças de madeira talhadas sem indícios de terem sido usadas. Os arqueólogos acreditam serem peças que estavam preparadas para a construção de uma nova embarcação.
Um cais e duas embarcações
Mas foi em outubro, quando começou a intervir numa nova área, localizada junto ao Cais de Santarém, que a equipa de arqueólogos descobriu os objetos que mais chamaram a atenção, até agora.
“Na área paralela à Av. Infante D. Henrique, foram identificadas duas embarcações também elas de madeira, sob os níveis de aterros dos finais do século XIX/XX”, revelava a EMEL, num dos comunicados divulgados ao longo da campanha arqueológica. “Esta área evoluiu ao longo dos séculos, de uma zona de rio e praia, consolidando-se como terra através da deposição dos vários níveis de aterros, os últimos dos quais correspondem a depósitos de dragagens do Tejo”, explica a empresa, acrescentando que os passadiços de madeira construídos junto ao paredão pombalino “permitiam o acesso ao rio e às embarcações a eles acostadas”.
Um dos barcos, descoberto praticamente completo e datado do início do século XIX, era uma embarcação de transporte mercadorias alimentares e cortiça no rio Tejo. Acostada a uma estrutura portuária em madeira, a embarcação tem 17 metros de comprimento e 3 metros de largura. A escavação dos lodos pôs a descoberto muitos cabos, mas também sapatos, sementes, cascas de frutos secos e algo fora do comum: pedras de âmbar.
“Ambas as embarcações identificadas correspondem a níveis de abandono de despojos náuticos e não a episódios de naufrágios”, informava ainda. Para além dos barcos, outra descoberta importante foram dois passadiços de madeira e uma nova escadaria associada ao cais pombalino. Dados cartográficos dos séculos XVIII e XIX referiam a existência de pelo menos três escadarias no mesmo troço do cais, esta última construída em calcário e liós. Os passadiços e o cais de madeira fazia provavelmente parte de uma antiga estrutura portuária ali existente, avançam os arqueólogos.
Em dezembro último, a equipa de arqueologia escavou ainda um aterro datado de século XVI. Iniciado por D. Manuel, estendia-se entre Cata-que-Farás (atual Cais do Sodré) e Santa Apolónia. O rei ordenou que toda aquela zona ribeirinha fosse aterrada e ali construído o Paço Real, no atual Terreiro do Paço, para que pudesse assistir à construção das embarcações nos estaleiros navais que aqui existiam.
Entre os inúmeros objetos encontrados até agora, há ainda uns, também curiosos e interessantes por serem de uso pessoal, como pentes de cabelo em madeira e peças de adorno, como contas de colar em vidro, pedras semi-preciosas e azeviche, pulseiras em vidro e anéis e alfinetes em bronze e ouro.
As obras no Cais do Sodré tiveram início em novembro de 2015 e deverão prolongar-se até ao fim do primeiro semestre de 2017. Dão sequência aos trabalhos de requalificação já concluídos da Praça do Comércio e Ribeira das Naus e com esta intervenção, a Câmara de Lisboa quer valorizar os espaços singulares do Largo da Igreja do Corpo Santo, da Praça do Duque da Terceira e do Jardim Roque Gameiro, frente à estação dos comboios, “tendo em conta que estes espaços integram um dos maiores interfaces de transportes de Lisboa, combinando comboio, barco, metro, autocarro e elétrico.
Incluem a ampliação dos atuais passeios e a construção de novas zonas de estar e de lazer. “Será essencialmente um espaço de usufruto das pessoas com ligação ao rio”, com áreas ajardinadas e de arborização ampliadas e mobiliário urbano renovado, informa ainda a autarquia.
A ligação da pista ribeirinha ciclável que se estende de Belém ao Parque das Nações será concluída (está atualmente parcialmente interrompida num troço entre o Cais do Sodré e Santa Apolónia). Será ainda reativado “o elétrico 24, que fará a ligação de Campolide até ao Cais do Sodré”, explicam os serviços autárquicos numa nota. O investimento é de cerca de 3 milhões de euros.
Ana Grácio Pinto