Projeto de final de curso de alunos da licenciatura em Cinema, a curta-metragem TURP, realizada por Liliana Gonçalves e Francisco Neves é a mais recente produção portuguesa a ser selecionada para o Short Film Corner em Cannes. Na bagagem vão meses de trabalho e expectativa.
A cinemateca Portuguesa ainda não abrira ao público nessa manhã de terça-feira, mas é rodeados por câmaras, que Liliana Gonçalves e Alexandre Lopes falam sobre TURP e a surpresa de serem selecionados para o Short Film Corner de Cannes. Com Liliana a sentir-se em casa junto das lentes – embora, confessa, se sinta bem mais confortável do outro lado destas – e Alexandre ainda a adaptar-se a todo este contexto cinematográfico e mediático – claramente distinto do dia-a-dia militar-, contam como surgiu Aleksander, um jovem que perde toda a família em plena Guerra do Kosovo.
Protagonizado por Miguel Nunes, TURP foca-se nos conflitos internos de Aleksander, único sobrevivente à execução da sua família por soldados jugoslavos/sérvios, durante a guerra no país em 1999. Profundamente marcado pela violência do ato, Aleksander revisita o passado, ao longo da curta-metragem, enquanto marca no próprio corpo essa parte da sua história. O próprio nome da película, que inicialmente se chamaria “Marcas do Meu Ser”, parte “da vergonha do tal conflito interior do personagem”, já que “’TURP’ significa ‘vergonha’ em albanês”, explica Liliana.
Depois de vencer, ex-aequo, o prémio para melhor curta do Over&Out em 2015 e de estar presente em vários festivais de cinema nacionais, a curta-metragem portuguesa parte agora para o Short Film Corner do Festival Internacional de Cinema de Cannes, depois de um intervalo de apenas algumas horas entre candidatura e confirmação da presença por parte da organização.
Entre o Afeganistão e Lisboa
Baseada numa mistura entre os dados históricos sobre a guerra do Kosovo, em 1999, e um esgotamento que Liliana sofrera quando tinha 18 anos, TURP surge assim como o enquadramento de uma “história fictícia numa real”, diz Liliana. Uma película que, acima de tudo, pretende contar a história de “um rapaz com um conflito interior um bocadinho parecido com o meu – com muitas metáforas pelo meio, como é óbvio”, explica, acrescentando que havia sempre preferido que esta “fosse um rapaz. E não sei porquê”.
Surgido logo no primeiro ano da licenciatura, ainda sob a forma do conto “Marcas do Meu Ser”, o projeto foi escrito em colaboração constante, ao longo de quase seis meses, entre Lisboa, onde Liliana estudava, e o Afeganistão, onde Alexandre se encontrava numa missão militar. “Falávamos esporadicamente pelo Facebook e na altura pediu-me ajuda para um trabalho que tinha de fazer para uma cadeira da faculdade e deu-me alguns inputs sobre o que ela queria para os conflitos interiores da personagem. E, no fundo, tentamos arranjar uma história que desse uma razão de ser para esse conflito interior”, conta Alexandre, “Era quase aquele jogo de construir uma história, em que um escreve uma palavra, depois passa para outro, e depois passa para outro outra vez… E, no fim, daquela amálgama toda saiu qualquer coisa. Obviamente que depois foi também muito filtrado pelos professores”.
Foi, no entanto, no segundo semestre que a decisão de desenvolver a história e a transformar numa curta-metragem começou a ganhar raízes, com Liliana a frequentar uma cadeira onde os alunos deviam desenvolver “uma primeira curta-metragem, com 5 minutos”. E onde a história do conto acabou “chumbada”, conta, enquanto acrescenta que na altura pensou mesmo em desistir do curso. Um dos seus professores, no entanto, assumiu então um papel fundamental: Gonçalo Galvão Teles enviou-lhe um e-mail a convidá-la para não desistir da história. “Um testamento! A dizer que tinha ficado tão triste como eu mas que aquela história não era só para cinco minutos- que tinha que ser maior. E a perguntar se eu queria ir desenvolvendo a história ao longo dos três anos e levar ao pitching final, no último ano”, explica Liliana.
“Ele disse aquilo, provavelmente, a pensar ‘ah, ela vai-se esquecer’. E eu pensei “Não, vou levar. Vou estudar, vou aprender tudo o que tenho a aprender nos três anos e vou desenvolver e melhorar a história’”, acrescenta entre risos.
E, por isso mesmo, quando chegou ao pitching para o projeto final de curso, no último ano da licenciatura, Liliana estava preparada. Não sabia era como adequar o seu argumento ao tema geral proposto pela universidade para as curtas-metragens desse ano: os contos populares. “Foi engraçado, porque no primeiro pitching estavam todos os alunos a dizer ‘ Eu baseei-me neste conto e tenho esta ideia’. E eu disse qualquer coisa do género: ‘Eu não tenho conto nenhum para a minha ideia mas é esta que eu quero continuar’”, conta entre risos. Aliás, no final de tudo, quando se aperceberam do porquê de a história lhes ser “familiar”, os próprios professores “acharam engraçado”, diz, “porque acho que foi a única história no curso todo em que eles acompanharam esta evolução toda”. Até porque, na realidade, conta, “quem olhar agora para esse conto e olhar para o filme, vai perceber que estão lá ideias mas que houve uma evolução enorme. Na altura ele tatuava o corpo, nem cravava mesmo, e a história terminava quando acabava a tinta e onde escrever.”
Filha e irmã de militares, as relações entre Liliana e as forças militares e de segurança era já conhecida pelos professores e colegas, tanto que, diz, a reação quando apresentava a ideia era próxima do “‘esta história é da Liliana, não estou a ver mais ninguém a fazer isto”, conta, “E mesmo entre colegas, se diziam ‘ah, acho que vai passar uma história de guerra…’, diziam logo: ‘A da Liliana?’. Por acaso era, mas se não fosse eles achavam logo que era”. No júri final, externo à Universidade, no entanto, a surpresa pela ideia de um filme “de guerra” surgir pelas mãos “de uma rapariga” não deixou de estar presente, com um dos membros do júri a referir inclusive que “então mas vem uma rapariga – rapariga, ainda para mais… Isto tinha lógica se fosse escrito por rapaz”, cita Liliana, entre risos, “Coisas de guerra. Mas vem uma rapariga falar de um rapaz que se corta?”.
Gerir emoções e atenção aos detalhes
Com um conceito baseado numa história tão pessoal nem sempre foi fácil gerir as emoções, refere. “Eu nunca tinha dito se era autobiográfico ou se não era. E eles acabavam por perguntar e diziam: ‘É que tu mexes nesta história de uma forma que não é só tu a escrever’”, conta Liliana. “Toda a gente percebeu que era uma história de autor, então houve um problema gigante que foi tentar explicar aos meus colegas o que é que eu queria. Eles perguntavam ‘então e se fosse daquela forma’, e a minha resposta era ‘Mas se for daquela forma já não é’”, explica enquanto admite que “também não é fácil trabalhar comigo- eles não queriam entender muito bem e eu também não lhes dei muita liberdade”.
Mas mais do que a gerir emoções, o grande trabalho da equipa foi a necessidade de atenção ao detalhe e referências históricas. Desde a própria escolha dos nomes, com Aleksander a surgir como uma espécie de homenagem a Alexandre e todos os outros nomes de família e pessoais a serem pesquisados e trabalhados no contexto da história. “Fomos pesquisar o nome de famílias lá. Assim como os nomes dos pais e do irmão – tem tudo uma lógica. A mãe tem a ver com guerreira, o pai com lutador e o irmão com paixão – que é a paixão que o Aleksander tem pelo irmão, que é um exemplo para ele”, conta. Ou o trabalho levado a cabo pelo guarda-roupa e arte, onde Liliana salienta a importância e a dificuldade de encontrar as fardas adequadas (embora, na realidade, estas tenham acabado por não ser as sérvias, optando-se depois por, através da iluminação e planos, não se dar destaque às insígnias).
“Houve um grande trabalho de pesquisa na parte da arte, também. O tipo de quarto que eles usam, de sala, os quadros florais, as florzinhas de papel ou de plástico na mesa…”. “Se estiver tudo bem, ninguém liga. Mas se não estiver, nota-se logo”, conclui entre risos.
Ou o momento em que o vizinho de baixo da casa onde estavam a filmar ameaçou chamar a polícia, quando as gravações se prolongavam já pela noite fora, no último dia. “Era o dia em que tínhamos a equipa toda e várias filmagens ao mesmo tempo. Então andamos a semana toda no ‘isto correu bem, mas sábado é que vai ser complicado’. E depois no ‘ai que amanhã já é sábado. Ai, que hoje já é sábado e isto tem tudo para não correr bem’”, contam, “mas correu bem, ainda fizemos meia horita antes do tempo que estava programado”. Inclusive a dinâmica de gravações entre militares reais e atores que faziam de militares. “Tínhamos atores que não sabiam certas formas e posições dos militares. E tínhamos militares que não sabiam o que é que é ser ator. Tudo ao mesmo tempo”, diz Liliana, contando que tal deu, claro, azo a algumas situações peculiares. Como na cena em que Alexandre acertou de verdade num dos atores: “nós chegamos e depois aproximamo-nos para o matar à queima-roupa. E há uma altura em que tínhamos combinado que tinha que lhe dar uma cronhada. E eu dei mesmo”, relembra Alexandre entre risos, enquanto Liliana acrescenta: “E deste três vezes! É óbvio que não eram armas reais, eram de plástico, e o ator disse: ‘Eu não me importo. Dá mesmo que é para parecer mais real’”. “Mas depois houve uma altura em que já dizia: ‘Ah, já me está a doer um bocadinho aqui o pescoço’”, confidencia.
Numa história onde tantas variáveis estavam em jogo, o profissionalismo de toda a equipa de atores foi, aliás, fundamental. Até no momento de gravar os diálogos, conta Liliana. “Pensei: ‘ok, vamos ter aqui um conflito Sérvio-Albânia e vão falar inglês? Em Hollywood é tudo que se vê: vão para a China, falam inglês. Nunca falam a língua nativa”, conta Liliana, “E português ia ser ridículo – não ia pôr pessoas a falar português na guerra do Kosovo”. A opção foi, então, gravar as falas dobradas por cima das originais, em português, no caso dos militares (“que estavam de cara tapada”, conta) e apenas José Fidalgo teve que aprender realmente as falas em Sérvio. E fez questão de investir arduamente nessa tarefa: “o nosso diretor de som tem amigos na Sérvia e pediu-lhes ajuda. O amigo dele falou com o José Fidalgo, gravou a mensagem de voz e enviou-lhe. Ele enfiou-se num quarto com os auriculares a treinar e depois chegou ao pé de nós e disse ‘ok, já sei o que é que tenho que dizer. Vamos gravar’”. “E correu muito bem, ele fez aquilo à primeira. Repetimos só mesmo por causa daquela tendência da realização do ‘está bom, mas vamos só tentar o ótimo’ – e depois, afinal, é o primeiro que fica”, conta entre risos, apesar de, acrescenta “ele estar sempre a dizer ‘Mas se for preciso eu fico aqui até às três ou quatro da manhã, o que importa é que fique bem’. Mas ele fazia tudo bem”.
Uma atitude semelhante, aliás, à do próprio protagonista, Miguel Nunes, que gravou o filme num dos intervalos das gravações de “Cartas da Guerra” de Ivo Ferreira, conta Liliana, e teve uma abordagem completamente detalhada não só à personagem como ao seu próprio desempenho.
“Com o Miguel, o realizador dizia ‘está bom’ e ele via e dizia: ‘não, não está. Eu quero fazer outra vez’”, relembra Liliana entre risos, enquanto salienta que “ele fez um papel muito bom”.
Cannes como destino
“Honestamente, quando nós começamos a escrever para o conto, nunca pensamos. Ok, eu queria tentar para aquela curta que não foi, e depois queria tentar para a curta final. Mas daí a irmos para onde vamos… Olhamos para trás e pensamos: ‘Aquilo era um conto, só. E pequenino”, conta Liliana quando confrontada com a recente seleção para o Short Film Corner, uma secção não-competitiva do Festival de Cannes. “Temos professores a dizerem ‘tenho 40 ou 50 nos de carreira e nunca fui a Cannes’ – pelo menos com um filme. E nós que estamos a sair do meio académico, que ainda não estamos no mercado de trabalho, já vamos. E foi aí que nós percebemos ‘se calhar isto é bom’. Não é só o ir a outro país, é o Festival que é”, conta Liliana. Depois de receber a confirmação de que tinham sido selecionados para o maior festival de cinema internacional do mundo apenas algumas horas depois de efetuar a inscrição, ainda estão “a processar” a informação, como salienta Alexandre, enquanto destaca que o seu “dia-a-dia” continua a ser a vida militar, um ambiente completamente diferente do de Cannes. “É surreal”, diz, embora saiba “muito bem fazer parte disso, estou muito orgulhoso”.
Depois de todos os contratempos e esforços, a seleção chega, por isso, não como uma surpresa total – afinal foi sua a decisão de se inscreverem-, mas como algo inesperado: “nós pensamos ‘ok, vamos arriscar, pagamos a inscrição e arriscamos’. Mas sempre a pensar: ‘ok, aquele [dinheiro] nunca mais o vemos e ficamos aqui na mesma’”, conta Liliana entre risos, “Não é que sejamos uns totós e não saibamos o que é aquele festival. Não estamos é à espera de ir”.