Desde cedo me interessei por esta temática. Fui adquirindo conhecimento e, uma vez liberta dos afazeres académicos e profissionais, abracei o ‘Projecto Linho Bordado’, para pesquisa e divulgação de rendas e bordados portugueses. Através do Jornal ‘Mundo Português’, a partilha de conhecimentos e ideias, nomeadamente, com portugueses e lusodescendentes a residir no estrangeiro, será uma mais-valia para este projecto de pesquisa e divulgação do nosso património cultural.
Por MARIA CECÍLIA FRAGOSO
Foi no âmbito deste projecto que fiz várias exposições em espaços públicos de diversas localidades, onde foram apresentados exemplares dos melhores trabalhos feitos actualmente, que levei da minha loja ‘Linho Bordado’ (no Centro Comercial Apolo 70, Campo Pequeno, Lisboa) para o efeito. Para além do aspecto cultural, havia a vertente pedagógica. Pelo contacto com os visitantes, portugueses e estrangeiros, percebi que tinham curiosidade e interesse, valorizavam e incentivavam a continuar. A partilha de conhecimentos e ideias foi enriquecedora para mim e, acredito, para ambas as partes.
Após décadas em que tiveram menor visibilidade, na nossa sociedade de hoje em dia, o interesse pelos bordados tradicionais é transversal: crianças e adultos de ambos os géneros, de diversas idades e classes sociais, decoradores, estilistas, artistas plásticos, sob perspectivas diferentes, interessam-se, apreciam, utilizam, recriam e não deixam morrer esta arte tradicional.
Através do Jornal ‘Mundo Português’, a partilha de conhecimentos e ideias, nomeadamente, com portugueses e lusodescendentes a residir no estrangeiro, será uma mais-valia para este projecto de pesquisa e divulgação do nosso património cultural.
Este primeiro artigo, de introdução ao tema, será generalista. Nos seguintes, em edições futuras deste jornal, iremos debruçar-nos em detalhe sobre diversos bordados e rendas portugueses.
As avós e as mães ensinavam as meninas…
Na minha infância, os bordados e as rendas manuais estavam no quotidiano das famílias portuguesas. A ornamentar roupa de cama e de mesa, vestuário infantil e feminino, na decoração de todas as divisões da casa. Cresci a ver mulheres fazerem estes trabalhos para uso próprio, em horas de lazer ou, como actividade remunerada, por encomenda.
As avós e as mães ensinavam as meninas. As moças da minha geração, quando casavam, tinham no enxoval rendas e peças bordadas feitas ao longo de anos por si próprias ou por familiares; trabalhos mais elaborados saíam das mãos de bordadeiras que dominavam a “arte de bordar”.
Na escola, havia aulas de lavores a cargo de professoras com formação para ensinar com rigor a elaboração de trabalhos muitas vezes artísticos. Nas últimas décadas, a par da evolução da sociedade, estas tradições perderam-se e, um pouco com elas, o gosto pelos bordados manuais.
Aprendi a distinguir Bordado (sempre feito com agulha e fio, de qualquer material, sobre um suporte de tecido ou outro), de Renda (composição de fios que se suporta a si mesma). Familiarizei-me com diferentes tipos de fios, de tecidos, de pontos, de artefactos necessários à execução dos trabalhos (agulhas, bastidores, réguas, ganchos, farpas, almofadas, bilros…).
No ensino secundário, tive o privilégio de ser aluna do Dr. Jorge Valadas, conhecedor profundo dos bordados tradicionais portugueses. Artista plástico de grande sensibilidade, aliava à pintura a composição de desenhos (riscos) a partir da estilização de flores e outros elementos, respeitando os motivos característicos de cada bordado.
Foi o meu primeiro contacto com bordados regionais portugueses, populares e eruditos, com a sua grande diversidade, executados apenas com materiais naturais (tecidos, fios, pedras…), associados a lendas e histórias fascinantes, e com especificidades locais a que não terá sido alheio o isolamento relativo das regiões no Portugal de antigamente.
A estética, a beleza, são componentes intrínsecas do bordado e da renda. Em Portugal, como noutros povos, o bordado usou-se para adorno pessoal, em vestuário, em todas as classes sociais.
Nos conventos, bordavam-se paramentos religiosos; bordava-se a roupa de trabalho (camisas dos pescadores da Póvoa de Varzim, aventais das peixeiras da Nazaré, trajes das lavradeiras do Minho); bordavam-se os trajes de casamento e de festa, bordados com afetos, sempre com muito valor simbólico como nos lenços dos namorados e nos fatos de noiva.
Bordados eruditos e populares
A nível local, os bordados regionais tiveram origem a partir dos bordados de vestuário. Feitos por mulheres do povo, com risco e pontos simples, flores, corações, pássaros, os motivos estavam também ligados à vida local, rural ou piscatória (lenços de namorados de Glória do Ribatejo, camisas dos pescadores da Póvoa). Com origem diferente, a partir de vestes reais, surgiu o Bordado das Caldas da Rainha.
Os bordados eruditos, trabalhos de bordadeiras experientes, surgiram em Portugal por diferentes influências externas que se perdem no tempo e que contribuíram para a sua diversidade.
São conhecidas, entre outras, as influências da Itália do Renascimento e da Inglaterra no bordado da Madeira, nos alinhavados de Nisa e no bordado de Tibaldinho, e da Índia no bordado de Castelo Branco. A decoração de porcelanas chinesas foi fonte de inspiração para os motivos do bordado de São Miguel.
A geografia do país terá sido importante na aquisição de conhecimentos vindos do exterior por via marítima, talvez já do tempo dos Fenícios, a avaliar pelo predomínio de rendas tradicionais (Bilros, Açores, Filet) em povoações do litoral e nas ilhas.
Do nosso património de bordados, há os que se afirmam por uma técnica de execução muito exigente (Açores, Madeira, Alinhavados de Nisa, Tibaldinho…): têm uma só cor; não é a cor que lhes dá vida, mas sim a riqueza de pormenores e a dificuldade da técnica. Outros afirmam-se pela diversidade de cores e simbologia dos elementos; geralmente com risco mais singelo e pontos mais simples (Viana do Castelo), mas podem ser também extremamente elaborados (Castelo Branco).
Há que manter tradições…
As sociedades evoluem, os gostos mudam, mas, nesta época de cultura globalizada em que vivemos, há que manter tradições e singularidades que nos identificam como portugueses e nos diferenciam em termos culturais.
Após os estudos de Calvet de Magalhães, Jorge Valadas e outros na segunda metade do século XX, é gratificante ver que se assiste hoje a uma redescoberta das rendas e bordados de Portugal.
São apreciados e usados, por vezes com uma utilidade diferente da do nosso tempo: as jovens combinam, de forma harmoniosa, calças de ganga com coletes de lavradeira de Viana do Castelo; usam bolsas de noiva de Viana como acessório de toilette; os xailes de Nisa, Madeira e Viana do Castelo são vistos com frequência em festas. Usam-se tapetes de Arraiolos e bordados tradicionais como complemento na decoração de apartamentos clássicos e modernos.
A nível local, têm sido notáveis os esforços para preservar as nossas rendas e bordados. Estilistas e artistas plásticos têm contribuído para dar visibilidade e manter viva esta arte ancestral que, no nosso país, é especialmente rica…