Nos últimos tempos, tem-se discutido um tema fraturante que pela sua complexidade precisa de uma abordagem ampla e informada sobre todas as suas nuances: a eutanásia.
Durante a sua participação no programa ‘Em Nome da Lei’, da Rádio Renascença, a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, garantia que a morte assistida já é uma realidade no Serviço Nacional de Saúde.
“Vi casos em que médicos ministraram insulina àqueles doentes para lhes provocar um coma insulínico. Não estou a chocar ninguém porque quem trabalha no SNS sabe que estas coisas acontecem por debaixo do pano, por isso vamos falar abertamente”, afirmou Ana Rita Cavaco.
Mas o que é a eutanásia?
Muito se tem discutido nos últimos tempos sobre a problemática da eutanásia, conduzida sob um caminho turbulento de opiniões divergentes a respeito da sua prática e legalização.
A eutanásia consiste em pôr fim à vida de um doente que não tem nenhuma possibilidade de cura – situação atestada por uma equipa médica que possibilita ao doente decidir quando e em que circunstâncias a sua vida terminará.
A eutanásia garante uma morte sem dor e sem sofrimento, e é por isso mesmo muitas vezes apelidada de “morte misericordiosa”: uma morte que visa o fim do sofrimento do doente a pedido do mesmo e assistido geralmente por um profissional de saúde. Este pedido deve ser feito aquando da plenitude das suas capacidades mentais, de forma a tomar uma decisão consciente e informada.
A eutanásia poderá ser de dois tipos: ativa ou passiva. Por eutanásia ativa entende-se aquela em que é administrada uma injeção letal ao doente; no caso da eutanásia passiva é retirado o tratamento de suporte à vida.
É também importante diferenciar esta prática do suicídio assistido, já que facilmente os dois conceitos têm sido alvo de algumas confusões e desinformações. O suicídio assistido consiste por um lado na colaboração de um profissional de saúde na morte do doente tal como na eutanásia, mas esta participação é indireta já que é o próprio doente quem realiza a última ação de tomar os fármacos letais.
No que diz respeito à legislação existente em Portugal sobre este tema, tanto o suicídio assistido como a eutanásia são proibidos, considerados homicídio qualificado pelo Código Penal. Existe ainda um único documento do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) que diz especificamente respeito ao tema da morte assistida, mas data de 1995, o que faz com que careça de uma revisão e eventual atualização no futuro.
Pode-se ler neste documento que “não há nenhum argumento ético, social, moral, jurídico ou da deontologia das profissões de saúde que justifique em tese vir a tornar possível por lei a morte intencional do doente (mesmo que não declarado ou assumido como tal) por qualquer pessoa designadamente por decisão médica, ainda que a título de ‘a pedido’ e/ou de ‘compaixão’”. Diz ainda que “não há nenhum argumento que justifique, pelo respeito devido à pessoa humana e à vida, os atos de eutanásia”.
Aceso debate em Portugal
O Código Deontológico dos médicos, dita que “é vedada a ajuda ao suicídio, à eutanásia e à distanásia”, indo isto de encontro ao juramento de Hipócrates que defende que “não darei veneno a ninguém, mesmo que mo peça, nem lhe sugerirei essa possibilidade”. Mas a verdade é que a realidade portuguesa é bastante distinta da realidade de outros países europeus como a Bélgica, a Suíça ou a Holanda.
No caso da Holanda a eutanásia foi legalizada a 1 de Abril de 2002, tendo sido este o primeiro país do mundo a fazê-lo, impedindo com isto processos judiciais contra médicos que sigam concretamente determinados “critérios de meticulosidade”.
Em Portugal tem sido muita a discussão em torno do tema e de qual a melhor solução possível numa questão tão complexa como esta. A verdade é que qualquer que seja a decisão, terá sempre de passar por uma longa, informada e consciente discussão pública. Esta discussão não é de agora.
Já em 2010, Paulo Rangel havia dito que “a falta de leis sobre a eutanásia e os dilemas éticos que se colocam no tratamento de doentes terminais, estão a deixar os médicos e outros profissionais de saúde inseguros no dia-a-dia”.
Vários passos têm sido dados no sentido de dinamizar e avançar com esta discussão. Ainda no decorrer deste mês, o deputado socialista Pedro Delgado Alves declarou aos jornalistas que o PS “está aberto ao debate e é com muito bons olhos que vemos que a sociedade civil tem essa capacidade mobilizadora, que também ajude o parlamento, ajude os decisores, a tomar decisões mais informadas nesse contexto”.
Para além disto o ‘Expresso’ e o ‘Público’ divulgaram ainda este mês um manifesto do Movimento Cívico para a Despenalização da Morte Assistida, que contou com as assinaturas de 112 personalidades, entre eles os socialistas Álvaro Beleza, Isabel Moreira, Elisa Ferreira e Helena Roseta, os antigos dirigentes do Bloco Ana Drago e Daniel Oliveira, os ex-candidatos presidenciais António Sampaio da Nóvoa e Marisa Matias, entre outros.
Este manifesto defende ser “urgente despenalizar e regulamentar a Morte Assistida”, tese suportada pelo lema dos defensores da eutanásia que consiste em conseguir-se uma decisão que garanta que da mesma forma que o direito à vida está consagrado em lei, também “o direito a morrer em paz” o deve estar.
Receio da generalização
As vozes dissonantes desta conduta defendem que a legalização da eutanásia iria abrir uma porta para que casos eticamente mais complexos e menos claros fossem considerados na prática da eutanásia.
Esta discussão justifica-se devido aos mais recentes acontecimentos registados nos países em que a eutanásia é legal, tais como a morte de uma belga de 24 anos que sofria de depressão profunda e que optou por terminar com a própria vida.
Com isto as barreiras deixam de ser claras na medida em que são aceites casos de pessoas que não estão em estado terminal (condição inicial para a prática da eutanásia) mas que desejam morrer por outras razões tais como a referida anteriormente.
É precisamente para assegurar que estes casos não aconteçam e se tornem recorrentes, que a presidente do Instituto de Bioética da Universidade Católica do Porto (UCP), Ana Sofia Carvalho, se pronuncia contra a legalização da eutanásia e do suicídio medicamente assistido em Portugal.
“Nós, na ética, falamos do efeito da ‘rampa deslizante’ nestes casos. Ou seja, a partir do momento em que se legisla só porque sim, deixa de se ter em análise a condição de cada pessoa, e começa a resvalar-se para situações eticamente mais complexas e difíceis”, explica.
O próximo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, optou pela imparcialidade neste tema em concreto e informou desde já que não irá vetar um referendo se for essa a vontade popular mas também não partirá dele essa proposta, ou seja, desempenhará somente o papel de árbitro.
A verdade é que, quer se decida por um referendo, quer se decida por se levar a discussão deste tema ao Parlamento, o caminho até uma decisão carecerá de tempo, informação e consciencialização por parte de todos os intervenientes no processo decisório, pesando bem todas as implicações de uma decisão e de outra, salvaguardando-se sempre os casos que se situem na barreira entre o que é considerado ou não apto para a prática da eutanásia.