Memória de Camilo Pessanha em Macau está quase esquecida

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Um homem que “escrevia umas coisas”. É dessa forma que se recordam de Camilo Pessanha, os dois trinetos macaenses do poeta que foi o expoente máximo do simbolismo em língua portuguesa. O mais consagrado poeta português a viver em Macau morreu há 90 anos, mas o que resta na memória de Camilo Pessanha é uma estátua e uma rua: “Pe san ié kai”.

Em Macau, dois trinetos recordam “o avô da avó”, um homem que “escrevia umas coisas” e de quem não sobrou nem uma fotografia. “A minha mãe contava que ele fumava ópio e que era maçom. Eu tinha 15 ou 16 anos quando me disse que ele era poeta. Não se ligava muito a isso”, recorda Ana Jorge, bisneta de Camilo Pessanha (nascido em Coimbra em 1867), que nunca chegou a conhecer, mas que viveu em Macau metade da sua vida e onde acabaria por morrer, a 1 de março de 1926.
As memórias já frágeis de Ana Jorge são complementadas com as dos filhos Filomeno e Victor, que ainda ouviram a avó, já falecida, falar de Pessanha. Maria Rosa dos Remédios do Espírito Santo tinha 12 anos quando Camilo Pessanha morreu, há 90 anos. “Camilo Pessanha sustentou a minha avó dos sete aos 12 anos. (…) Ele não gostava muito do filho, dizia que ele não tinha juízo, estava sempre fora, e por isso a sustentou. Ela ia a casa dele e ele dava-lhe dinheiro. A avó gostava dele”, lembra à jornalista da agência Lusa o trineto Victor Jorge, 66 anos, segurando uma fotografia do João Manuel Pessanha, filho de Camilo Pessanha, com farda de oficial da marinha mercante, e fazendo referência a uma relação difícil entre pai e filho que ainda hoje é comentada em Macau.
Tudo indica que João Manuel foi fruto de uma relação de Pessanha com uma concubina chinesa. Apesar de ser o seu único filho consensualmente reconhecido, a relação entre os dois terá sido distante. João Manuel nasceu em 1896 e foi batizado como filho de pais incógnitos. Só em 1900 foi perfilhado por Pessanha. No seu testamento, o poeta deixou a maior parte dos bens à nova companheira, Kuoc Ngan Yeng, em detrimento do filho. Foi também pela avó que os trinetos de Pessanha souberam que descendiam de alguém que fez nome na literatura, ainda que não fosse essa a faceta a que era mais associado em Macau, onde foi professor, juiz e conservador do registo predial.
“A conversa surgiu quando arrumávamos coisas e vimos umas fotografias antigas. ‘Avó, quem é esse homem com bengala, cheio de barbas?’, ‘É seu trisavô’, disse ela, e começou a contar a história dele. Contou que foi advogado, tinha mulheres chinesas, até aprendeu a escrever chinês. Depois foi juiz”, recorda Victor, estimando que teria uns 20 anos na altura. E escritor? “Sim, ela sabia que tinha sido poeta. Foi também encarregado do Governo e tinha muitas antiguidades”, conta.
Filomeno lembra-se de ter sabido do parentesco mais tarde, teria já mais de 30 anos, quando Maria Rosa, a avó, terá sido abordada para dar uma entrevista: “A avó falava dele, mas não muito. Dizia que era boa pessoa, escrevia umas coisas, tinha boas relações com muita gente, tanto portugueses, como chineses e macaenses. Mas a avó só nos disse umas coisinhas, não temos muito conhecimento”.
Apesar da surpresa da ligação familiar, ambos sabiam bem quem era Camilo Pessanha, já que “a cabeça inteira dele, com os bigodes”, como recorda Filomeno, passava de mão em mão, impressa na nota de 100 patacas.
Ana Jorge, “quase a fazer 83 anos”, e os filhos são macaenses em todos os aspetos: nos traços faciais que refletem a mistura portuguesa e chinesa, no sotaque, no bilinguismo, nas expressões, na afabilidade. Talvez pela distância, temporal e geográfica, pelo português fluente mas temperado pelo chinês e pelo patuá macaense, estes familiares de quarta geração, sem uma “Clepsidra” na estante, estão afastados da obra do poeta. “Só passei uma vista de olhos pelos poemas, não posso ser muito afirmativo”, comenta Victor à Lusa.
Filomeno, hoje com 59 anos e membro da Tuna Macaense, diz ter lido alguns versos depois de a avó lhe contar da ligação familiar. Musicar poemas de Pessanha chegou a passar-lhe pela cabeça, mas eram muito longos e cortá-los estava fora de questão. “Faço muitas músicas em português e patuá. Não estudei música, mas sou músico”, comenta, referindo-se à veia artística: “Acho que herdei isso dele”.

Um nome numa rua e uma lápide
Nove décadas depois da sua morte, o que resta de Camilo Pessanha em Macau é uma estátua e a rua “Pe san ié kai” (‘kai’ significa rua). O caráter “minoritário” da literatura portuguesa em Macau, e ainda mais da poesia e da corrente do simbolismo, explica, na opinião de académicos, a aparente ausência de Camilo Pessanha da cidade onde o poeta viveu 32 anos. Esta aparente ausência deve-se, na opinião do presidente do Centro Pedagógico e Científico de Língua Portuguesa de Macau, a Pessanha “ter sido um poeta português” numa “cidade chinesa”.
“Há 600 mil pessoas que vivem em Macau, 20 mil falam português. Portugueses de Portugal serão uns 4.000. Desses, quantos leem poesia?”, questiona Carlos André, que dirige aquele centro do Instituto Politécnico. É, no entanto, “a maior figura de Macau na literatura portuguesa” e Carlos André admite que lhe “causa estranheza” que, ao entrar no Cemitério São Miguel de Arcanjo, não seja fácil identificar a sua campa.
A campa, discreta, com uma lápide em chinês, entalada entre jazigos vistosos no Cemitério São Miguel de Arcanjo, foi visitada por muitos curiosos ao longo dos anos. “Não havia poeta, escritor, que não perguntasse por Camilo Pessanha. Quando vinham cá pessoas ligadas às letras, lá íamos mostrar (a campa)”, recorda à Lusa o investigador Luís Sá Cunha, que fez parte de um grupo de intelectuais e amantes de Pessanha que, por diversas vezes, lhe prestaram homenagem no cemitério.
Sá Cunha, que ainda sabe de cor o caminho para a última morada do poeta, logo lançou o alerta, repetido por inúmeras pessoas, de que se trata de um túmulo difícil de encontrar. A campa de Camilo Pessanha, discreta, encontra-se numa ponta do cemitério, com uma lápide escrita em chinês, identificável apenas pela pequena fotografia do poeta, com as suas barbas negras. Na pedra tumular já só se consegue ler a primeira frase da inscrição: “À saudosa memória do poeta”, que termina com “do seu filho J.M.P.”, uma referência a João Manuel Pessanha, que também está ali enterrado.
Nos anos 1990, Luís Cunha apresentou um projeto para um novo jazigo: “Tomei essa iniciativa porque há coisas sagradas. Várias pessoas juntaram-se para tratar disso”, recorda. Era “um projeto simples”, com “quatro colunas e uma cobertura”, mas que carecia de autorização do Governo. No entanto, o tempo passou e o aval não veio. “Insisti duas, três vezes e percebi que ia cair”, conta, não sabendo identificar um motivo concreto.
Luís Cunha recorda como, antes de 1999, “havia uma certa peregrinação” à campa, que funcionava como uma “lavagem moral interior”. Em particular, lembra a visita da escritora Natália Correia, que além do cemitério, “queria ver tudo”, até “os ‘karaokes’ e as saunas” de Macau.
Quando estavam os dois no edifício na Avenida da Praia Grande onde em tempos esteve a casa de Pessanha, Sá Cunha perguntou: “Natália, sabes onde tens os pés? Na casa de Camilo Pessanha!”. “Ela até deu um salto”, descreve. “Por todas estas razões, acho que era obrigação dignificar o Camilo. E isso não se fez”, lamenta.

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