Em 2014 evocou-se o centenário do início da Primeira Grande Guerra, que mudou a história contemporânea não apenas europeia, mas mundial. Mas este período importante do século XX prolongou-se por quatro anos – iniciou-se a 28 de julho de 1914 e terminou a 11 de novembro de 1918 – e teve também impacto em Portugal, que mobilizou mais de cem mil homens paras as frentes de batalha. A participação portuguesa no primeiro grande confronto bélico mundial do século passado está a ser documentada num projeto lançado pelo Instituto de História Contemporânea (IHC), através do portal «Portugal 1914».
O portal «Portugal 1914» (http://www.portugal1914.org/portal/pt/) é promovido pelo Instituto de História Contemporânea (IHC) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa (UNL), e inscreve-se num programa diversificado dedicado à evocação da passagem do centenário da Primeira Guerra Mundial. Fotografias da época e artigos de investigadores contam a história da participação portuguesa numa guerra que constituiu “uma rutura profunda no percurso da história contemporânea europeia e mundial, cujos efeitos fraturantes e duradouros envolveram, marcaram e determinaram muito significativamente a História de Portugal”, pode ler-se na apresentação do portal.
Entre 1914 e 1918 partiram para a Guerra mais de cem mil soldados portugueses, que combateram em África e na Flandres. Portugal registou quase 40 mil baixas. Houve quase oito mil mortos e outros tantos feridos, seis mil ficaram desaparecidos e mais de sete mil foram feitos prisioneiros.
O assassínio do arquiduque
A visita do arquiduque Francisco Fernando (1863-1914) era arriscada, mas o herdeiro do império austro-húngaro e a sua mulher a duquesa Sofia de Hohenberg (1868-1914), decidiram assistir à inauguração das novas instalações de um museu público em Sarajevo, naquele 28 de julho de 1914. O atentado estava a ser planeado desde março pela organização terrorista ‘Mão Negra’, que defendia a independência das províncias eslavas do sul em relação ao império austro-húngaro e a criação da Grande Sérvia. Seis assassinos foram colocados ao longo do trajeto a ser percorrido pela comitiva real, mas dois deles não conseguiram concluir a sua missão. Um terceiro elemento do ‘Mão Negra’ atirou uma granada de mão ao veículo de Francisco Fernando, que acabou acabou por explodir debaixo do automóvel seguinte, causando vários feridos.
O arquiduque e a mulher deslocaram-se ao hospital para visitar os feridos e durante o percurso, acabaram por ser mortalmente baleados pelo quarto assassino. “O crime gerou uma onda de protestos em Sarajevo e em várias cidades da Áustria-Hungria, obrigando o Exército a sair às ruas para repor a ordem pública. Nesse mesmo dia, as grandes potenciais mundiais começaram a mobilizar-se, em nome de velhas alianças. A 28 de julho, a Áustria-Hungria declara guerra à Sérvia, desencadeando um conjunto de movimentações militares que conduziram à Primeira Guerra Mundial”, explica Fátima Mariano, do Instituto de História Contemporânea (IHC), no artigo «O assassínio do arquiduque Francisco Fernando».
A nível político, a Grande Guerra de 2014-2018 determinou o fim do absolutismo monárquico e dos impérios austro-húngaro e turco otomano e ainda das três dinastias reinantes que tinham entrado na guerra: alemã, austríaca e russa.
Portugal e a Grande Guerra
À exceção de Espanha, dos Países Baixos, dos Países da Escandinávia e da Suíça, a Primeira Guerra Mundial envolveu os restantes países europeus. Portugal mobilizou mais de cem mil homens, dos quais cerca de oito mil perderam a vida nas trincheiras da Flandres ou nos campos de batalha de África.
A 4 de Agosto de 1914 chegou a Portugal a notícia da declaração de Guerra da Inglaterra à Alemanha. Num telegrama que dirigiu ao ministro britânico em Lisboa, o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros inglês, Eyre Crowe, aconselhou Portugal a não manifestar a neutralidade, assegurando que “em caso de ataque pela Alemanha contra qualquer possessão portuguesa, o Governo de Sua Majestade considerar-se-á ligado pelas estipulações da aliança anglo-portugues”.
“O discurso oficial assumiu efetivamente que os abalos que por toda a Europa se tinham feito sentir desde o assassínio de Sarajevo, se repercutiriam em Portugal por força de um conjunto de princípios essenciais cuja origem se encontrava claramente na inter-relação (ou dependência) internacional dos sectores económicos e financeiros portugueses. Por isso, entender e avaliar a declaração feita por Bernardino Machado perante o Congresso da República, a 7 de Agosto de 1914, implica ter presente as circunstâncias contraditórias que vinham rodeando a posição portuguesa, nomeadamente o facto de, por indicação do Foreign Office, Portugal não poder declarar-se nem beligerante nem neutral face à Guerra na Europa”, explica Ana Paula Pires, do IHC, no artigo «Portugal e a Grande Guerra».
Em Setembro de 1914 partiram para África as primeiras tropas portuguesas, mas desde Agosto desse ano os políticos nacionais tinham opiniões divergentes quanto a uma possível intervenção militar de Portugal. “Do lado dos Democráticos, liderados por Afonso Costa, a intervenção na Guerra, ao lado da Grã-Bretanha, cedo foi encarada como uma oportunidade não só para consolidar o jovem regime republicano na esfera internacional, mas também para salvaguardar a integridade dos territórios portugueses em África. Este foi de resto o único argumento que uniu ‘guerristas’ e ‘anti-guerristas’”, afirma Ana Paula Pires.
Um ano e meio depois, em Fevereiro de 1916, a Inglaterra acionou o Tratado de Windsor, a mais antiga aliança militar do mundo, para pedir ao Estado português que capturasse os navios alemães que estavam ancorados em portos portugueses, para ajudar no esforço de guerra. A resposta alemã não se fez demorar: a 9 de Março de 1916, a declaração oficial de guerra a Portugal (apesar dos combates em África desde 1914) era entregue em Lisboa, pelo embaixador alemão.
“Por este procedimento o Governo português deu a conhecer que se considera como vassalo da Inglaterra, que subordina todas as outras considerações aos interesses e desejos ingleses. Finalmente a apreensão dos navios realizou-se sob formas em que deve ver-se uma intencional provocação à Alemanha. A bandeira alemã foi arriada dos navios alemães e em seu lugar foi posta a bandeira portuguesa com a flâmula de guerra. O navio almirante salvou por esta ocasião. O Governo Imperial vê-se forçado a tirar as necessárias consequências do procedimento do Governo português. Considera-se de agora em diante como achando-se em estado de guerra com o Governo português. Ao levar o que precede, segundo me foi determinado, ao conhecimento de V. Exa., tenho a honra de exprimir a V. Ex.a a minha distinta consideração”. Terminava assim a declaração entregue pelo diplomata alemão Friedrich Von Rosen a Augusto Soares, Ministro Português dos Negócios Estrangeiros.
Dias mais tarde Democráticos e Unionistas (as duas principais forças políticas da República) apresentavam ao Parlamento, um Governo de União Sagrada. Dez meses depois, a 27 de janeiro de 1917, o primeiro contingente do Corpo Expedicionário Português (CEP) partia para a frente de batalha em França.
A rotina de guerra
Constituído por cerca de 30 mil homens, o CEP realizou os primeiros treinos nos quartéis das 2ª, 5ª e 7ª Divisões. Os militares partiram depois para Tancos, em Abril de 1916, onde receberam instrução preparatória conjunta. “Este esforço de preparação é vulgarmente conhecido por ‘Milagre de Tancos’. Quando as tropas partem para França no ano seguinte, enquadradas no Corpo Expedicionário Português, Garcez (repórter fotográfico Arnaldo Garcez) acompanha-as, sendo-lhe atribuído o posto de alferes ‘equiparado’. Ao serviço do Exército registou o quotidiano dos soldados portugueses. Na Flandres, o CEP ficou subordinado à British Expedicionary Force (B.E.F.)”, conta Ana Paula Pires, no artigo «O Treino».
O CEP – que foi impulsionado em grande parte pelo ministro da Guerra, Norton de Matos – chegaria à Flandres (região norte da Bélgica) no final da Primavera de 1917, para prosseguir ali a instrução militar dos soldados. Durante seis horas por dia, “eram submetidos a um treino intensivo de que fazia parte, o tiro em carreiras reduzidas, a ginástica, a esgrima, os exercícios com metralhadora e granadas, bem como as célebres manobras com máscaras anti-gás”, conta a investigadora do IHC, acrescentando que “respirava-se por um tubo, narinas comprimidas”. “Os óculos embaciavam-se. Os homens deixavam de o ser, eram apenas figuras mergulhadas num abrigo fechado por uma cortina preta”, lê-se ainda no artigo.
O contingente português foi colocado no vale do rio Lys, de Armentiéres a La Bassée, de Merville a Béthune, tendo as tropas sido distribuídas por três espaços diferentes – zona de defesa à retaguarda, zona de batalha e zona avançada. A zelar pela disciplina e pelo cumprimento integral de todas as ordens estava o capitão que, de noite ou de dia, visitava as trincheiras, telegrafando as perdas e enviando relatórios sobre o andamento dos trabalhos. “Faltavam praças nas unidades. O medo aumentava. Pedras, confundiam-se com vultos, a sombra de uma árvore com o movimento de um homem. Minuto a minuto as trevas da noite dissipavam-se por entre o disparo de foguetes de cor branca, iluminando a ‘terra de ninguém’. O capitão vai gritando: ‘Haja silêncio, haja serenidade’. Os soldados erguem-se empunham pistolas e correm para a linha da frente”, revela a investigadora no artigo «O Treino», divulgado no portal «Portugal1914.org».
Noutro artigo, intitulado «Os combates do Corpo Expedicionário Português (CEP)», a investigadora diz que o CEP “não participou propriamente em batalhas”, pois na guerra de trincheiras a maioria dos confrontos que envolveram as tropas portuguesas, “não podem ser classificados com rigor como batalhas, mas sim como combates”, que na maioria das vezes “se deram sob a forma de raids (incursões de tropas de infantaria às trincheiras alemãs) ou, então, quando a iniciativa do ataque pertencia aos alemães e aos portugueses cabia o papel de defensores”.
Mas houve de facto uma grande batalha que envolveu tropas portuguesas: a batalha de La Lys (9 de Abril de 1918). Na primavera desse ano, os alemães lançaram uma vasta ofensiva para furar as linhas Aliadas. A batalha de La Lys foi uma de várias outras que aconteceram no quadro dessa ofensiva alemã que tinha como principal objetivo alcançar a costa Atlântica. Depois de La Lys e nos últimos meses de guerra “algumas tropas do CEP integradas em forças britânicas participaram na perseguição dos alemães em retirada nas margens do Escalda”, conta ainda Ana Paula Pires.
O cemitério de Richebourg
Dos milhares de soldados portugueses mortos ou desaparecidos, muitos foram enterrados fora de Portugal e os seus corpos não puderam ser repatriados. Mas há em França um local onde todos os anos esses militares portugueses são recordados: o cemitério de Richebourg l´Avoué.
Não é o único local onde estão enterrados militares portugueses. “Em outros lugares existem talhões em cemitérios militares, as denominadas secções portuguesas, onde se encontram homens do C.E.P”, explica a também investigadora do IHC, Margarida Portela. A diferena está no facto de Richebourg ser um cemitério militar exclusivamente português, com 1.831 mortos, dos quais 238 são desconhecidos.
“Os corpos dos homens que hoje encontraram o seu descanso naquele local vieram de outros cemitérios em França, como o de Touret, Ambleteuse ou Brest. Vierem também de Tournai na Bélgica e alguns da Alemanha, no caso dos prisioneiros falecidos naquele território. A recolha total e os trabalhos de inumação dos corpos ter-se-á efetuado entre 1924 e 1938”, conta Margarida Portela.
A sua construção deveu-se principalmente a M. Lantoine, o cônsul português em Arras, e a Alberto Lello Portela, oficial que integrou a missão de aviação portuguesa na Grande Guerra. “O tempo passou e a estrutura simples do cemitério de Richebourg l´Avoué contêm agora a memória dos expedicionários que deram a vida pelo conflito mundial no palco europeu. É um cemitério de guerra. E como tal deve ser olhado por todos nós: como um memorial ao soldado português”, lembra a investigadora.
António Braz: o prisioneiro 601
Se milhares de soldados portugueses morreram e outros tantos foram dados como desaparecidos, também foram numerosos os que foram capturados pelos alemães e colocados num campo de concentração. Foi o caso de António Braz, cuja história foi recolhida pelo IHC no portal «Portugal 1914».
António Braz dedicou 30 anos de vida ao Exército Português. Nascido a 21 de fevereiro de 1877 no Monte das Taipas, freguesia de São Vicente, município de Elvas, António Braz embarcou em 1896, para a Cidade de Moçambique como 2º sargento da 1ª Companhia do 2º Batalhão de Infantaria 4. Entre junho de 1911 e maio de 1913, o alferes António Braz prestou serviço em Angola. Em de Outubro desse ano regressa a Portugal, mas retorna a Angola, já como tenente, onde permanece até fevereiro de 1916. Participou em combates contra os alemães no sul do país antes de regressar a Elvas, mas ficou pouco tempo junto da família: em agosto de 1917, embarca para França incorporado no 3º Batalhão da Infantaria 17 rumo ao porto de Brest.
Até 7 de Março de 1918 permanece entrincheirado, tendo sido vítima de um ataque com gás e ferido numa perna. Havia de regressar às trincheiras no mês seguinte para render o Batalhão de Infantaria 23 no setor de Ferme du Bois. Nesse mesmo dia, foi promovido a capitão. Porém, durante a batalha de La Lys, a 9 de Abril, foi feito prisioneiros pelas tropas alemães e enviado para o campo de Rastatt, no sul da Alemanha. Em julho foi enviado para outro campo de concentração – Breesen, no norte do país. Era o prisioneiro 601. Mas a dia 24 de Dezembro, véspera de Natal, recebe a comunicação oficial da saída do campo de prisioneiros. Parte no dia 28 de Dezembro para a Holanda e fica alojado numa escola antes de ser enviado para Haia, onde foi recebido na estação pelo embaixador, António Bandeira. A 12 de Janeiro de 1919 embarca no navio brasileiro ‘Sobral’, juntamente com mais 2100 soldados, em direção a França. A 25 de Janeiro embarca no vapor inglês ‘Helenus’, com 76 sargentos e equiparados, 221 cabos e soldados e 80 oficiais, e chega a Lisboa no dia 28. O relato dos dias vividos em cativeiro deram origem ao livro «Como os prisioneiros portugueses foram tratados pelos alemães», editado em 1935 pela Tipografia Popular de Elvas.
Nos anos 20, foi governador do Forte da Graça, em Elvas, e reformou-se na década de 30. Nos anos 40 e 50, teve uma intensa atividade jornalística em Elvas, onde escreveu sobre a vida militar, as experiências em África, França e na Alemanha. Morreu em 1968, em Elvas, aos 91 anos.
As cadernetas de 34 soldados
O Instituto de História Contemporânea (IHC) não recebeu apenas contribuições particulares e familiares. A Liga dos Combatentes, instituição com quase 100 anos, constituída em 1923, fez chegar ao portal «Portugal 1914», 34 cadernetas de combatentes portugueses da Grande Guerra. O objetivo manter viva a memória destes militares portugueses que posteriormente à guerra, retornaram à sociedade mas acabou caído no esquecimento.
O IHC está a recolher histórias, recordações, relatos, memórias, fotografias, documentos ou objetos para o aprofundamento do estudo da Primeira Guerra, em particular para compreender a importância desse conflito em Portugal. Quem quiser fazer chegar ao IHC algum elemento sobre a participação de familiares naquele conflito mundial, pode contatar o Instituto através de: www.facebook.com/memoriasdaguerra ou do endereço eletrónico memoriasdeguerra@portugal1914.org