No dia 29 de janeiro, o Governo português aprovou um decreto-lei que regulamenta a concessão da nacionalidade portuguesa por naturalização, a descendentes de judeus sefarditas expulsos de Portugal a partir do século XV, um direito que pode ser exercido por tempo indeterminado. Depois da expulsão, determinada por D. Manuel I a partir de 1496, os judeus portugueses fugiram para vários locais, entre as quais Salónica, na Grécia, cidade onde ainda há nomes com origem portuguesa…
A partir de agora, descendentes de judeus sefarditas que consigam provar uma forte ligação com Portugal poderão solicitar um passaporte. A prova poderá ser feita através de uma combinação do apelido, língua falada pela família ou prova de descendência direta. Mas a comprovação apresenta diversas dificuldades. “Podem talvez encontrar-se hoje descendentes de sefarditas portugueses, talvez pelos nomes, mas não sei o que têm de particular caso tenham vindo de Portugal e não de Espanha. Nada os diferenciava do resto dos judeus sefarditas e não se pode encontrar uma distinção”, diz à agência Lusa, Erika Perahia Zemour, diretora do museu judeu de Salónica, inaugurado em 2001.
Na comunidade judaica daquela cidade do norte da Grécia, ainda existem apelidos que indicam origem portuguesa, apesar das dificuldades em determinar ascendência após um século XX de guerras, desastres naturais, deportações e mortes em massa que quase aniquilaram esta população sefardita.
Apesar de recordar que a sua mãe “frequentava a sinagoga Lisboa” – uma das que existiram em Salónica com nomes de cidades portuguesas e que foram destruídas em 1917 num incêndio ou durante a segunda guerra – Erika Zemour diz ser muito difícil “encontrar referências” sobre descendentes de judeus portugueses. “Os arquivos da comunidade foram consumidos no grande incêndio de 1917, e assim não temos nada antes dessa data. Os arquivos elaborados pela comunidade entre 1917 e 1941 foram levados pelos alemães (durante a II Guerra Mundial). Hoje, apenas temos os aquivos pós-guerra. E o que sabemos de antes da guerra é aquilo que os sobreviventes (do holocausto) contaram à comunidade”, precisa.
No início do século XX, ainda durante o domínio otomano da cidade, mais de metade da população de Salónica era de origem judaica. E perto de 50 mil judeus ainda habitavam a cidade no início da ocupação alemã da Grécia em 1941, durante a II Guerra Mundial. Descendiam na sua maioria, dos judeus sefarditas expulsos primeiro de Espanha em 1492, e depois de Portugal a partir de 1496. Os que permaneceram na península ibérica foram forçados à conversão ao catolicismo, e dos batismos forçados e em massa surgiram os “cristãos-novos” e “marranos”, cripto-judeus que continuavam a praticar o judaísmo em segrego embora professassem publicamente a fé católica. Muitos também foram vítimas do ‘pogrom’ de 1506 em Lisboa, que provocou centenas de mortos e acelerou o êxodo, em direção a Amsterdão, Marrocos e Balcãs.
Mas milhares optaram por Salónica, atualmente a segunda maior cidade da Grécia, juntando-se às comunidades sefarditas vindas de Espanha que durante um breve período se tinham instalado em Portugal. Ergueram as suas sinagogas e exprimiam-se em ladino, com origem no castelhano de então e ao qual foram acrescentando diversas expressões em turco, grego, mesmo em hebraico, mas “muito poucas”. Seria a sua língua até ao século XX.
Sinagogas Lisboa, Évora, portugal
Em agosto de 1917, já após a cidade ter sido integrada na Grécia e com o início do êxodo das populações muçulmanas, um grande incêndio que se prolongou por dois dias e duas noites destruiu parte da cidade, atingindo em particular os bairros judeus. Casas, sinagogas, bibliotecas, arquivos, fábricas, escolas, foram devoradas pelo fogo e milhares de pessoas ficaram desalojadas. Foi o segundo grande golpe na comunidade, após a retirada dos turcos otomanos a partir de 1912, que sempre estabeleceram relações privilegiadas com os judeus em comparação com as restantes comunidades da cidade, em particular os cristãos. “Certo é que a sinagoga Lisboa foi fundada pelas famílias que vieram de Lisboa, ou a Évora pelos que vieram de Évora. Mas como depois de desenvolveu, é outra história”, acrescenta Erika Zemour à Lusa.
Quando os sefarditas portugueses se instalaram em Salónica, a partir dos finais do século XV, começaram a frequentar quatro conhecidas sinagogas, Lisboa – depois dividida em duas, yashan (antiga) e hadash (nova), Portugal e Évora. “Havia ainda uma quarta chamada Yahia (ou Leviat Chen) e provavelmente fundada por Dona Gracia Mendes Nasi (nasceu em Lisboa) para judeus de descendência portuguesa convertidos ao catolicismo”, indica Jacky Benmayor, 67 anos, empresário e ex-vice-presidente da comunidade judaica de Salónica, hoje com cerca de mil pessoas. “Mais tarde tornou-se na sinagoga dos ‘estrangeiros’, que chegaram num período mais tardio e não pertenciam a nenhuma das sinagogas existentes”, acrescentou.
Jacky Benmayor ainda se exprime em ladino. E assinala alguns apelidos de famílias judias de Salónica que frequentavam sinagogas e com provável descendência portuguesa. Assim, a sinagoga Lisboa Yashan (Antiga), era frequentada pelos Afias, Benforado, Benveniste, Eskaloni, entre outras famílias. A Lisboa Hadash (nova) pelos Abravanel, Alvo, David ou Saporta. A sinagoga Évora pelos Altaras, Ergas, Bivas ou Maloro, e a de Portugal pelos Atias, Perera, Medina, entre pelo menos 25 famílias. Na de Dona Gracia, compareciam mais de 40 famílias.
Cada sinagoga também refletia rivalidades pessoais, divergências nos rituais de celebração, problemas com os negócios. E consumava-se a separação. Os sefarditas espanhóis ou vindos de Itália também tinham os seus próprios templos, chamados Aragão, Castilha, Catalão, Itália ou Sicília.
Rika Benveniste, professora de história medieval da Europa na universidade de Tessália, Grécia central, suspeita que é de origem portuguesa. “Parece que Benveniste é um nome que vem de Portugal e não de Espanha. É da parte do meu pai, da parte da minha mãe é Saltiel. Mas não sei, é muito difícil traçar toda a árvore genealógica”, lamenta. Mesmo assim, é possível que alguns judeus de Salónica assinalem a recente decisão do governo de Lisboa e consigam solicitar nacionalidade portuguesa.
Lei é um momento “histórico”
O decreto-lei que regulamenta a concessão da nacionalidade portuguesa a descendentes de judeus sefarditas expulsos de Portugal a partir do século XV, mais do que uma “reparação histórica” é “a atribuição de um direito”, afirmou a ministra da Justiça. “Demoramos muito tempo a tratar desta matéria. Portanto, penso que hoje é um dia que devemos assinalar”, considerou a governante, adiantando que “não haverá prazo para o exercício deste direito, ao contrário do que acontece nalguns projetos ou nalgumas legislações”.
“Contaremos neste processo com os contributos das comunidades israelitas radicadas em Portugal, que ajudarão o Estado na recolha e na certificação dos elementos que atestam a pertença a uma comunidade sefardita”, disse a ministra da Justiça na conferência de imprensa que realizou a 29 de janeiro, sobre as conclusões do Conselho de Ministros.
Já para o secretário-geral da Rede de Judiarias de Portugal, este é “um momento histórico”. “Do meu ponto de vista, este é um momento histórico que vem dignificar o nosso país pelo reconhecimento de um direito que era devido aos descendentes dos judeus portugueses”, afirmou Jorge Patrão, em declarações à agência Lusa.
A lei da nacionalidade foi alterada em abril do ano passado pelo parlamento português, por unanimidade, para que os descendentes de judeus sefarditas expulsos de Portugal pudessem ter a nacionalidade portuguesa, por proposta do PS e do CDS-PP, mas essa alteração estava por regulamentar.