Em que papel se sente mais à vontade? É um diplomata francês de nacionalidade francesa ou um luso-descendente que chegou a diplomata do seu país de acolhimento?Eu sou um diplomata francês, representante de França. Mas com a particularidade de representar a França em Portugal, que não é um país qualquer para mim. Penso que isto é um símbolo da importância e do papel da emigração portuguesa em França e do lugar dos luso-descendentes em França. Estão já presentes em muitos sectores da vida política, municipal, económica, cultural e desportiva. E também na administração pública e no ministério dos negócios estrangeiros. Eu não sou o único.
Talvez seja o mais velho, porque o meu pai, os meus avós foram para França no início dos anos 30, enquanto que a maioria dos emigrantes portugueses em França foram nos anos 60. Tenho colegas que também têm origem portuguesa, por exemplo, a nova cônsul-geral de França no Porto é uma colega luso-descendente, que se chama Costa de Amorim. A sua família vem da região do Porto, tal como a família do meu pai. Essa é uma razão particular pela qual as autoridades francesas me decidiram nomear, e à minha colega, representantes de França em Portugal. Acho que isso é normal, não só porque os luso-descendentes constituem uma parte substancial da sociedade francesa, mas também porque na Europa a situação é diferente do que as relações diplomáticas têm sido tradicionalmente.
Na Europa os países membros da União Europeia partilham muitas coisas, por isso é natural que as relações diplomáticas entre a França e a China sejam de natureza diferente das relações entre França e Portugal. Somos membros da União Europeia, partilhamos um destino comum e uma legislação3 um ideal de sociedade.
Com que idade se deu conta de que também havia Portugal nesse sangue francês?
A primeira vez que vim a Portugal foi em 1966, tinha 9 anos, e naquele tempo encontrámos a família. Um ramo que tinha ficado em Portugal. O problema é que não falava português.
A minha mãe é francesa. O meu pai não falava português, tinha esquecido a língua portuguesa. Na família falava-se francês. Era “a escola” dos avós. No início dos anos 30 foram poucos os portugueses que foram para França, e em pequenas cidades da província eles eram uma simples família portuguesa num oceano francês. E continuar a falar português poderia ter sido uma desvantagem e por isso os meus avós fizeram o esforço para falar francês para facilitar a integração dos filhos. Podemos considerar que teria sido melhor manter o conhecimento e a prática da língua portuguesa e ao mesmo tempo estudar francês e integrar-se na sociedade francesa.
Mas tudo na época era diferente do que aconteceria 30 anos mais tarde, com comunidades portuguesas mais fortes e mais numerosas, conseguindo manter contactos entre si e mantendo um sentido de comunidade portuguesa. Era mais fácil. Mas naquele início dos anos 30 os portugueses estavam de facto isolados.
Foi pela origem da família que aprendeu a falar português?
Sim, foi um incentivo muito forte, porque a consciência dessa origem portuguesa, da história familiar, era uma parte da minha identidade e isso sempre existiu desde a infância. Essa é a grande razão pela qual decidi aprender português. Já tinha aprendido outras línguas estrangeiras na escola, alemão e inglês, porque eram as duas línguas oferecidas, não havia possibilidade de aprender outras. Mas na universidade tive essa oportunidade, e para mim aprender português era mais natural do que aprender italiano ou espanhol.
Recordando os seus 20 anos, como é que via na altura a relação de um certo conflito da sociedade francesa com os emigrantes, que receavam que a emigração pudesse ter de acabar. Como é que sentiu esses problemas?
A emigração num país qualquer nunca é uma história simples sem dificuldades. Tanto para o emigrante como para o povo de acolhimento. Aqueles que pretendem que é uma coisa normal e simples não conhecem a realidade, mas em França o caso português foi bastante diferente porque acho que foi uma das comunidades cuja integração
nunca se tornou um problema. Havia problemas locais, de situações particulares, mas do ponto de vista global, nunca foi, porque há uma proximidade natural com Portugal.
Outra razão é que Portugal tornou-se membro da União Europeia e temos uma vantagem histórica: vivemos num espaço comum, em paz, e partilhamos um destino comum, uma coisa que é óbvia para as novas gerações. O meu filho mais velho tem 20 anos, e para ele a Europa é um espaço sem fronteiras, mas também é um espaço comum do ponto de vista cultural. Viaja-se pela Europa como eu viajei pela França. O espaço único agora é o espaço europeu. E ser dum país ou do outro isso não importa.
Os jovens europeus têm uma consciência, ou uma inconsciência, das diferenças, das fronteiras, das dificuldades e também da história dramática da Europa. De tal modo que acho que as pessoas de origem portuguesa não se percebem como estrangeiros, porque eles agora vivem num espaço europeu que tem uma convergência, uma coesão, uma unidade que é diferente da relação que os franceses e os europeus têm com culturas mais distantes. Também para os portugueses há a possibilidade de regressar a Portugal, há um vai e vem entre alguns países que também facilita e muda a perspectiva e a percepção que as pessoas têm da sua presença num país, do seu futuro e da relação com o país de origem e de acolhimento.
O seu filho mais velho já conhece Portugal?
Sim, os dois. Tanto o mais velho como o mais novo, que está aqui connosco em Lisboa. Já descobriram Portugal.
Como é que os seduziria para virem cá? O que diria de Portugal? Que país é? Como acha que são as pessoas?
Não ouso julgar um país. Conheço um pouco mas não conheço assim tão bem. Só estou aqui há 3 semanas. Só posso falar pela imagem de Portugal e dos portugueses em França que é muito positiva, embora às vezes ser só positivo não chega.
Os portugueses nunca fazem as primeiras páginas dos jornais. E há uma imagem que precisa de ser modernizada porque em França há uma imagem estática, que não toma em conta as mudanças que ocorreram ultimamente neste país. Recordo que a primeira vez que vim a Portugal, em 1966, já constatei mudanças muito fortes e o país de hoje é muito diferente do que vi em 1966.
Receio bem que a imagem de Portugal em França seja datada e antiga. Faz parte dessa imagem a percepção de que os portugueses são um povo que tem uma consciência forte de si, da sua identidade, com um enraizamento muito forte. Portugal, a terra portuguesa, para os portugueses, tem uma importância e uma força, que é diferente do sentimento nacional em França. É uma outra natureza. Tenho a impressão, talvez seja errada, de que há um conhecimento superficial sobre Portugal, e que só agora se vai começar a descobrir a dimensão global e internacional do país, da história portuguesa e do seu papel na história mundial.
A grande maioria dos franceses só descobriu Portugal através dos portugueses que foram para França. Um povo tranquilo, trabalhador, sem problemas de integração. Mas isso não é a única dimensão da realidade humana e histórica de Portugal. Agora com o crescimento do Brasil, com ambições internacionais, os franceses descobrem o Brasil, e constatam que no Brasil se fala português. Desta forma tomam consciência de que o português é uma língua internacional. Uma língua falada por milhões de pessoas em todo o mundo.
Como língua-mãe há mais pessoas que falam português do que aquelas que falam francês. É uma língua de comunicação internacional num mundo global. E tomamos consciência disso. Ainda há pouco tempo fui a uma livraria francesa e vi pessoas que compram livros para aprender português. Não têm nenhuma relação familiar ou pessoal com Portugal ou o Brasil, mas querem aprender português porque é uma língua de comunicação internacional. O
meu filho mais velho está a aprender português. Ele tem uma motivação pessoal. Não sei se era o caso há 20 anos, mas agora há uma mudança de comportamentos, de melhor perceber a lusofonia e o mundo lusófono globalizado.
Sendo Portugal e França dois países com bom relacionamento, qual é a grande missão que aguarda o embaixador de França?
O meu carácter é de não ficar tranquilo e de apenas gozar a vida só porque o clima é bom e a cidade é bonita. Há sempre algo para fazer. Vejo vários eixos de acção. Um é relacionado com os assuntos europeus. Porque estamos no mesmo barco, navegando no oceano da globalização. E o mar é muito perigoso e sabemos que a situação dos nossos países é difícil, do ponto de vista económico e financeiro.
Partilhamos as mesmas experiências, as mesmas dificuldades, sessenta por cento da nossa legislação é de origem europeia. Temos de perceber que actualmente numa Europa com 27 membros, o conhecimento dos interesses dos parceiros é menos óbvio, menos directo do que numa Europa com 15 membros. Tudo se trata em Bruxelas. Mas em Bruxelas há 27 países em volta da mesa e não há tempo para os países falarem uns com os outros. De tal modo que não há tempo para saber exactamente quais são as motivações, os interesses de Portugal.
Os colegas em Bruxelas não têm tempo para conhecer com precisão as visões de todos os parceiros. Por isso é preciso conhecer e transmitir e explicar aos colegas em Paris o que pretende Portugal. O segundo eixo é relacionado com as relações económicas dos dois países. A França é para Portugal o terceiro fornecedor. E no ano passado França era o principal investidor estrangeiro em Portugal. As ligações económicas são muito estreitas, muito fortes, e tudo o que pudermos fazer para ajudar as empresas francesas na sua relação com Portugal é útil. Também acho que a dimensão humana dessas relações deve ser desenvolvida.
Temos um capital importante, que é a presença de luso-descendentes em França, mas também daqueles que regressaram a Portugal, e eles podem ser uma ponte humana que serve os interesses de ambos os países.
A terceira tarefa diz respeito à questão da cultura e da língua. Vivemos num mundo globalizado, onde o inglês é a língua de comunicação básica, mas na Europa temos a riqueza das outras línguas. Tanto o francês como o português são línguas de grande cultura e são línguas internacionais, que vários países partilham. Seria uma pena se os europeus falassem só numa língua de comunicação básica e não conhecessem outras. Esse é um objectivo que foi adoptado em Barcelona numa declaração em 2002, que diz que todos os alunos da União Europeia devem aprender duas línguas estrangeiras.
Sabemos que a primeira será o inglês, mas o que está em jogo é a segunda língua. Temos que assegurar nos sistemas escolares a possibilidade de aprender uma segunda língua estrangeira. E temos que reforçar a posição do ensino da língua francesa em Portugal, mas também em França desenvolver o ensino da língua portuguesa. A língua francesa tem tido uma posição muito privilegiada em Portugal. Já não é o caso. Estamos em concorrência com outras línguas. A minha tarefa é também mostrar que o francês é uma língua de comunicação internacional, útil, uma língua de cultura e veículo de um pensamento diferente da realidade contemporânea.
É muito importante que os europeus falem não só uma língua, mas uma segunda, e se for possível uma terceira. A Europa é um espaço único, especialmente para os jovens, e seria uma pena se o único veículo de comunicação entre os jovens da Europa fosse o ‘globish’ (global + english). Os meus filhos falam inglês, alemão e estão a aprender português. A língua é o melhor veículo para conhecer o outro. Falar apenas ‘globish’ leva a um relacionamento superficial com os outros.
Para terminar, quando a França jogar com Portugal, qual é a bandeira que vai estar em cima da mesa?
Eu sou francês. Para mim, a bandeira e o hino nacional francês são coisas que me arrepiam. Não sei quanto tempo ficarei em Portugal, espero que não tenha que me confrontar com um jogo entre Portugal e França. É mais fácil querer a vitória de Portugal contra outro país qualquer. Como embaixador francês em Portugal e como luso-descendente prefiro não assistir a um encontro entre França e Portugal.