O programa da chegada a Ushuaia era simples: fazer uma passagem com algumas velas na Punta Escarpados às 14:30 e depois fundear até à manhã seguinte em que se procederia às manobras de atracação. O vento forte que vínhamos a sentir de proa não nos permitiu cumprir com esta solicitação tardia da organização e fizemos uma passagem com todo o pano latino ao pôr-do-sol aproveitando a acalmia do vento ao abrigo da baía da cidade. Entretanto chegaram as últimas previsões meteorológicas que davam vento muito forte para o período das atracações e foi antecipada a manobra para a noite. Continuámos a navegar muito lentamente com os latinos e algumas palhetadas de hélice, oferecendo o espectáculo às muitas pessoas que compareceram na marginal. As condições eram óptimas e carregámos o pano a 10 metros do cais sendo depois empurrados por um rebocador para completar a manobra.
Na madrugada seguinte ainda conseguiram atracar os navios que tinham ficado mais para trás, o “Cisne Branco”, o “Capitan Miranda” e o “Simon Bolivar”. Mas o “Cuauhtemoc” já foi apanhado no Canal de Beagle pelos fortes ventos de 50 nós que estavam previstos e só atracou às 23:30 deste segundo dia. Ficou assim completada a frota a que se juntaram o “Europa” e o “Xplorer”. Ambos veleiros charter que fazem cruzeiros à Antárctida a partir de Ushuaia e que aproveitaram o fim da época para seguir com a Sudamérica. O “Europa” é uma pequena barca transformada a partir de um barco-farol com 99 anos, com quem nos encontrámos em 2008 na Cidade do Cabo e em 2009 em Boston, Halifax e Belfast. O “Xplorer” é um iate de 20 metros. São comandados por um holandês e um australiano, respectivamente.
À chegada fomos recebidos por uma banda e pelo Comandante da Área Naval Austral e comitiva, a quem oferecemos um Moscatel bem português.
O dia 20 começou com a preparação do navio para a estadia – iluminação de gala instalada, amarelos areados, baldeações e arranjos. Seguiram-se passeios turísticos para as tripulações que incluíam almoços típicos e que se repetiram nos dias seguintes. À tarde, a já tradicional apresentação de cumprimentos e conferência de imprensa dos comandantes, com muita adesão dos órgãos de comunicação.
Seguiram-se dois grandes eventos, um para as tripulações, com música local ao vivo e as bandas dos navios. O nosso representante foi o Marinheiro Cláudio Magalhães que, com o seu órgão electrónico, consegue animar qualquer festa pela noite dentro. O outro evento foi uma recepção oferecida pelo Município de Ushuaia aos Comandantes, Oficiais e Sargentos e outros convidados especiais, com actuações de um grupo folclórico típico da Terra do Fogo, com fortes raízes no flamengo, e um espectáculo de tango, intercalados com muitos discursos e oferta de lembranças para os navios. O local era um Hotel de Montanha com uma vista espectacular sobre a baía, onde se viam os navios com as suas iluminações.
O dia 21 começou com o desfile das tripulações e uma cerimónia de boas vindas com a participação do público em geral. Nesta cerimónia foram entregues Certificados de Passagem pelo Fim do Mundo, lembranças para os gavieiros (pessoal de manobra) mais jovens e um certificado especial para a “Sagres” pelo simbolismo da união da Europa a estes eventos.
O almoço foi mais uma oportunidade de convívio entre os Comandantes e as Autoridades Navais locais e da organização, a que se seguiu um passeio ao Parque Nacional da Tierra del Fuego onde terminam os 3076 quilómetros da Ruta Nacional Nº3 que sai de Buenos Aires e que corresponde ao quilómetro 18 000 da Pan-americana que liga este ponto ao Alasca. Precisamente naquele local a delegação portuguesa distribuiu copos de plástico servidos com Vinho da Madeira. Muitos dos presentes não o conheciam mas o sabor e a ocasião daquele brinde ficaram-lhes marcados para sempre na memória! O parque, muito arborizado, apresenta vários lagos e reentrâncias do Beagle. Com muitas aves, é dominado por duas espécies introduzidas pelo homem: os coelhos, para fazer face às necessidades de alimentação dos inúmeros náufragos que eram recolhidos na região no final do século XIX e inicio do século XX, e os castores que foram introduzidos em 1946 para produção de carne e pele. Mas os 25 casais que vieram do Alasca têm agora mais de 100 000 descendentes e são uma praga pois a sua pele tornou-se má e a sua carne muito rija. Destroem florestas com as represas que constroem nas inúmeras linhas de água alagando terrenos. Tentaram introduzir a raposa vermelha como predador mas elas gostaram mais dos ovos das aves e o problema subsiste…
O dia terminou com uma recepção no “Guayas”, o navio do Ecuador, da qual nos escapámos para um jantar de Oficiais da “Sagres” no restaurante Volver, aquele que nos indicaram ter a melhor Santola da cidade. Gigante e saborosa.
O último dia de porto começou com a Reunião Pré-largada em que confirmam os planos de largada, a navegação e as previsões meteorológicas, e em que os organizadores do porto seguinte o apresentam e discutem pormenores da respectiva estadia. Seguiu-se uma homenagem por representantes das guarnições ao Comandante Luis Piedrabuena, um herói da assistência e salvamento marítimo nestas terríveis águas. O almoço de despedida da Marinha Argentina aos Comandantes teve como menu a iguaria local que nos faltava provar – o cordeiro fueguiño (da Terra do Fogo) assado no churrasco e servido em grelhadores para manter a sua temperatura. Foi servido no restaurante da estância de inverno “Las Cotorras” situado a 30 km da cidade.
No cais, os navios continuavam a receber milhares de visitas e preparava-se um concerto de bandas dos navios e da Marinha.
Ao final da tarde chegou a comitiva que viria representar Portugal nas comemorações da Argentina e do Chile. O Secretário de Estado da Defesa e dos Assuntos do Mar (SEDNAM), Dr. Marcos Perestrello, e o Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), Almirante Melo Gomes, participaram na Recepção de despedida do último porto Argentino a bordo da “Sagres” e fazem o trânsito para Punta Arenas onde participam nas cerimónias do primeiro porto do Chile, com especial destaque para a entrega do busto de Fernão de Magalhães que nos acompanha desde Lisboa.
A recepção foi um sucesso completo pois contou com a presença das mais altas entidades locais, que incluíram a Governadora e o Intendente (presidente do município), além das cúpulas da Defesa e da Marinha. Antes da recepção realizou-se o concerto no cais e durante a mesma, os nossos convidados assistiram ao fogo-de-artifício de encerramento das comemorações. Terminou com muitos abraços de despedida destes camaradas de uma Marinha amiga que tudo fizeram para que nos sentíssemos bem no seu belo país.
A cidade de Ushuaia é relativamente recente, actualmente tem cerca de 80 000 habitantes, cresceu em torno de uma prisão de alta segurança de criminosos perigosos e presos políticos, construída nos anos 30, à semelhança de Alcatraz. Para além do propósito intrínseco, a sua construção teve também o objectivo estratégico da Argentina povoar território onde as disputas na delimitação da fronteira com o Chile foram uma realidade relativamente recente.
Os próprios presos foram construindo infra-estruturas como o molhe do porto e vias de comunicação rodoviária. As fugas do presídio não eram impossíveis, no entanto a inospitalidade da região não lhes dava alternativa senão regressar e pedir abrigo. Ushuaia esta rodeada por alta montanha com neves permanentes e banhada por mar gélido, ao que acresce o vento frequentemente fustigante. Actualmente o presídio é um museu que está inserido no recinto da Base Naval Austral. Ushuaia vive sobretudo do turismo que as estâncias de esqui e as expedições à Antárctida fomentam.
O frio intenso acompanhou toda a estadia mas o abrigo do vento, com excepção do primeiro dia, permitiu desfrutar do porto sem problemas.
Largámos às 09:30 de ontem caçando velas logo em frente ao cais enquanto actuava uma banda e dezenas de amigos se despediam. Seguimos à vela pelo canal cujo nome corresponde ao navio de Charles Darwin, o Beagle, que descobriu esta passagem em 1826, mais de 300 anos após os feitos de Magalhães. Aproveitámos, mais uma vez, a embarcação dos Pilotos chilenos de Puerto Williams para uma sessão de fotografias de exterior com o CEMA e SEDNAM. Carregámos e ferrámos o pano antes da saída do canal e do mau tempo de proa que nos acompanharia até ao Cabo Horn.
Eram 02:15 desta madrugada quando, estando de quarto o Guarda-marinha Dias Pinheiro, passámos o cabo para Oeste. Seguiu-se a formação de um dispositivo para desfile e fotografia de todos os navios frente ao Cabo. Alvorada às 06:30 e passagem a todo o pano às 08:00, logo após o nascer do sol. Estávamos com muita pressa pois temos uma frente muito activa em aproximação e precisamos de regressar ao Canal Beagle para navegar por canais interiores até à Cidade do Estreito.
À passagem do Cabo, a guarnição regozijou-se pelo cumprimento do sonho de qualquer marinheiro e de um dos pontos altos da nossa viagem de circum-navegação. Não só se trata do Horn mas também o ponto mais a Sul que o navio alcançou em 72 anos. Tiraram-se fotografias para a posteridade. Muitas fotografias. Sempre com o Cabo em fundo. A mais interessante era a que mostrava o telégrafo de ordens a indicar Máquina Parada com o mesmo fundo.
Seguiu-se a reunião da guarnição no poço para ouvir palavras de incentivo do Almirante CEMA que, na presença do SEDNAM, evocou o momento e brindou à Sagres, à Marinha e a Portugal com um Porto de Honra! Terminámos com o Hino da Sagres cujo refrão reza assim:
“Nós somos a Escola Sagres;
Somos grandes marinheiros;
Viajamos pelo mar;
Viajamos pelo mar;
Conhecemos o Mundo inteiro.”
Rapidamente se fizeram as manobras para regressar ao abrigo do Beagle onde entraremos dentro de algumas horas.
Este trajecto vai também ser digno de destaque. Glaciares, passagens estreitas, vida marinha, etc.
Até breve!