Victor Alves Gomes é um luso-descendente nascido em França que, como fez questão de sublinhar, escolheu “ser português”. Apesar de ter apenas 36 anos, a sua vida poderia ser tema de um livro. Quadro superior da Comissão Europeia, em Bruxelas, Victor já esteve envolvido em missões de paz em Angola, Moçambique e no Kosovo. Experiências que o fizeram “deixar de ver o mundo apenas através dos olhos de um europeu, e a relativizar as coisas”, como contou ao Emigrante/Mundo Português, no dia em que regressou ao colégio onde estudou, em Braga, para falar aos novos alunos, sobre o seu trabalho na União Europeia.
Victor Gomes nasceu em Paris, França, em 1971, filho de portugueses, minhotos, naturais de São de Padreiro de Santa Cristina, freguesia do concelho de Arcos de Valdevez.
França foi o destino do pai, que com 17 anos, percebeu que tinha poucas perspectivas de trabalho na sua terra. Com quatro irmãos mais novos a depender dele e prestes a ser enviado para cumprir o serviço militar em África, viu na emigração clandestina para França a sua única saída. “Meu pai levou uma semana a lá chegar”, disse ao Emigrante/Mundo Português, sublinhando que,
naquela altura, a situação era diferente. “Quando lá chegou, mesmo clandestino, teve logo sete ofertas de emprego, coisa que hoje em dia, um jovem que chegue a França não terá”. Alguns anos depois, chegou a sua mãe, em 1970, também clandestina e depois de atravessar Espanha “em condições extremamente difíceis, que hoje nem conseguimos imaginar”, recorda.
Vítor nasceu em 1971 e, cinco anos depois, nasceu o segundo filho do casal, Abel, hoje engenheiro civil. Ambos estudaram em Portugal, por opção dos pais, que, a seguir ao 25 de Abril, começaram a pensar regressar ao seu país. “Diziam que «para o ano é Portugal». Só que era sempre o ano seguinte e nunca se concretizou, mas o que fizeram foi enviar-nos para casa dos meus avós e assim já estaríamos aqui quando regressassem”, explica Víctor Gomes.
Disciplina para
toda a vida
Assim, viu-se a ser enviado para a casa dos avós, na aldeia perto de Arcos de Valdevez, logo após ter completado o ensino primário em França. Em Arcos estudou até ao oitavo ano, para ingressar depois no Colégio D. Diogo de Sousa, em Braga, em regime de internato, onde ficou até completar o 12º ano. Estabelecimento de ensino particular, fundado em 1949 e propriedade da Arquidiocese de Braga, o colégio marcou Victor Gomes para toda a vida. “O Colégio D. Diogo é uma escola com rigor, com disciplina e com óptimas condições de estudo. Eu saia das aulas e ia para a sala de estudo, tínhamos cinco horas de estudo por dia e condições que não existiam na casa dos meus avós”.
Foi a esse estabelecimento de ensino que o ajudou a ser uma pessoa disciplinada e aplicada, que o actual quadro da Comissão Europeia regressou, no dia 9 deste mês, para contar aos actuais alunos o seu percurso de vida (ver página 4).
Concluído o liceu, a universidade não foi a sua primeira opção. Falou mais alto a paixão pela aviação. Rumou a Lisboa, para fazer o curso de piloto profissional de aviões, na Escola de Cascais. Tinha poupado dinheiro, ao qual juntou algum que os pais lhe deram, mas tirou o curso numa altura que considerou “bastante complicada”, por haver desmobilização de militares e por o mercado estar “por baixo”. Com dificuldades em arranjar emprego no sector da aviação comercial, viu surgiu diante de si a possibilidade de ir trabalhar para uma agência das Nações Unidas e agarrou-a. Fez as provas, passou, mas, quando estava a trabalhar no terreno, descobriu que era importante ter um diploma universitário. “Inscrevi-me na Universidade Aberta e durante as férias, vinha a Portugal preparar os exames e passava. Para isso era importante a disciplina, mas concluí o curso de Língua e Literaturas Modernas, que tinha escolhido um pouco por paixão”, recorda.
Angola, Moçambique
e Kosovo
Actualmente a trabalhar em Bruxelas, Victor Gomes tem no entanto, muitas histórias de aventuras, vividas em diferentes partes do globo. Em Setembro de 1999 chegou ao Kosovo, três meses depois da assinatura do acordo que pôs fim à guerra. O Kosovo passou a ser administrado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e Victor esteve na região até Dezembro de 2002, como administrador civil da União Europeia. “Fazia parte da missão civil, trabalhava todos os dias com os kosovares, sérvios e albaneses”, explica.
Foi no Kosovo que começou a interessar-se pelas “questões da Europa” e decidiu candidatar-se a um mestrado em Estudos Europeus, que realizou na Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica. O mestrado foi feito entre o trabalho no Kosovo e a entrada para a Comissão Europeia, em Bruxelas.
Mas o Kosovo não foi a sua primeira experiência no terreno. Já contava com Moçambique e Angola no currículo. “Estive em Moçambique de 1994 a 1996 e em Angola de 1996 a 1999, envolvido nas missões de Paz das Nações Unidas, ou seja, ONUMOS em Moçambique e UNAVEM III em Angola”, integrado no contingente da ONU responsável pela desmobilização dos militares. “Enviei o meu currículo e tive muita sorte em ser escolhido. Quando há emergências precisam de pessoas logo, e eu tinha uma vantagem em relação aos outros candidatos: falava português, além de francês e inglês e, pelo que o meu chefe posteriormente me explicou, havia também o facto de ter cumprido o serviço militar”, recorda ao Emigrante/Mundo Português.
Nos dois anos que esteve em Moçambique trabalhou na desmobilização de soldados da Frelimo e da Renamo. “A guerra tinha acabado e tínhamos que mandar os soldados para casa. Desde registar as pessoas, no computador ou escrever à mão, preparar o seu transporte, a comida destinada, etc, ocupava-me de tudo. Participei na recepção de refugiados que tinham fugido para a África do Sul e o Zimbábue e os refugiados internos. Participei também na organização das eleições. Era trabalho de emergência que não tinha horas fixas e nunca se sabia quando acabava”.
Mas a experiência vivida em Angola foi ainda mais marcante. Victor Gomes foi enviado para uma área de aquartelamento da Unita, entre o Huambo e o Lobito, onde, além de preparar a desmobilização de militares ainda fez distribuição alimentar, numa zona a sul, onde havia uma seca.
Um choque
Aquela era uma área complicada onde a desmobilização acabou por correr “bastante mal”, por já se notar a existência de conflitos que levaram ao agravamento da guerra. Victor Gomes refere que a meio do processo de desmobilização, o conflito recomeçou e recorda a sua última missão naquela região: fechar os escritórios e tentar embarcar para Luanda as pessoas que trabalhavam consigo. “Foi extremamente difícil. Tinha feito uma reserva de avião para os meus colegas do Huambo, num avião Hércules, que foi abatido por alguém, guerrilha ou governo, não se sabe. Foi um choque, porque pensei que os meus colegas estavam dentro. Felizmente, não estavam”. Quando saiu de Angola, a 4 de Janeiro de 1999, estava “totalmente farto, desiludido e triste”, mas diz essas experiências o fizeram crescer e encarar as situações com nova perspectiva. “Compreendo que a vida nem sempre é fácil, mas quando comparada com a vida de certas populações, nós somos uns privilegiados”, destaca.
Moçambique e Angola também o ajudaram a ganhar mais confiança e si e nas suas capacidades, até, porque, estava sozinho. “Ou conseguia resolver ou não conseguia. Como se diz em África «ou consegue, ou desconsegue»”, brinca. Aprendeu também a deixar de ver o mundo apenas através dos olhos de um europeu, e a relativizar as coisas. “Às vezes é difícil para os meus amigos perceberem, por exemplo, se vão a um supermercado porque não há 20 tipos diferentes de iogurtes. Eu digo-lhes que estive cinco anos sem comer iogurtes. Ou quando se queixam que a vida está má, eu digo-lhes que cheguei a ver pessoas vestidas com sacos de plásticos. Tudo é muito relativo e isso, a nível de crescimento pessoal, foi muito bom, porque quando uma pessoa ajuda os outros, também se ajuda a si próprio”.
Diz que nos cinco anos vividos em África, pode não ter ajudado muito ou ensinado muito, masque, certamente, aprendeu bastante. A Angola, ainda não voltou, mas não lhe falta vontade. Quanto a Moçambique, regressou em 2003, já no quadro de uma missão de observação eleitoral da União Europeia, na altura em que estava a fazer o mestrado. Nesse mesmo ano, realizou outras missões de observação, nomeadamente no Ruanda e no Sri Lanka.
Ligação a Portugal
As funções que actualmente exerce em Bruxelas são diferente do trabalho que realizou no terreno, mas tem vantagens que Victor Gomes aprendeu a valorizar. Uma delas é permitir-lhe ter “uma vida fora do trabalho”. “Este é, de facto, mais um trabalho de escritório, que se organiza através de correio electrónico, mas é uma evolução natural. Uma pessoa vai evoluindo com a idade e apesar de não estar todos os dias no terreno, organizo o trabalho. Em Bruxelas, neste momento, tenho uma vida profissional que também me permite ter uma vida pessoal perfeitamente normal”, destaca.
Actualmente ligado à DG Alargamento, uma agência relacionada com a cooperação técnica com os países da vizinhança e os países candidatos. A Victor Gomes soube o dossier do Montenegro – “todos os pedidos, a cooperação que enviamos, etc, sou eu a pessoas de contacto que organiza esse trabalho”, explica. (…)