António Anjos perdeu a visão há mais de 40 anos, quando tinha 14, e ainda hoje não sabe o que lhe aconteceu. Ouviu, muitas vezes, dos que o rodeavam palavras de comiseração e pena.
"Coitadinho, para ficar assim, mas valia que tivesse morrido", diziam. Enganaram-se nas previsões. Aos 55 anos, António diz-se orgulhosamente "uma pessoa livre" que faz "uma vida quase normal". Para além de guardar 230 ovelhas na aldeia de Avelanoso, no concelho de Vimioso, em Trás-os-Montes, tem também vacas, éguas, sete cães, frangos, vitelas e porcos.
Colhe tudo da terra, que cultiva com a mulher Maria Aurora e diz "que só não cria peixe, porque não tem uma piscina".
Sentido de humor é o que não falta a este animado conversador que facilmente faz esquecer ao interlocutor a sua condição de invisual. Não dispensa os óculos escuros, boina e sacola a tiracolo com água e pão para os cães e mais alguns haveres não vá o estômago dar as horas. É ele que dá as coordenadas para percorrer os cerca de cinco quilómetros que separam a sua casa, na aldeia, dos campos onde vai ter com a mulher, que já anda com o gado. "Agora tem uma lomba, depois uma recta, depois uma curva e logo a seguir…é mesmo aí", indica levando a jornalista da agência Lusa ao seu lugar de predilecção: o campo. O dia estava solarengo e António sabia, porque "aquece nas faces", mas conhece também o ar fresco dos dias nublados. E como sabe se vai chover?, perguntamos-lhe. "Ouço muito as notícias: ó senhora jornalista, diga lá, para saber se levo guarda- chuva ou não", responde com uma gargalhada.
António tem uma espécie de mapa de toda aquela zona na cabeça, conhece de cor aquelas terras e é ele quem vai "ver" e decide os pastos que precisam de arrendar para alimentar o gado. Tem uma colecção de paus, adaptados das árvores dos campos, que o guiam e o "calçado também é muito importante" para reconhecer o que pisa".
A mãe, Fábia Pires, com 83 anos, tem "muito orgulho" neste filho que trata dela, já que os outros seis filhos estão fora, uns em Madrid, outros em Lisboa.
Fábia, assim como toda a família, pensou que quando António cegou, aos 14 anos, teriam de tomar conta dele para toda a vida.
Durante quase dois anos "foi uma angústia", recorda António, porque não o deixavam sair de casa. Começou a escapar à noite. Fugia, não para ir aos bailaricos como os jovens da sua idade, mas para começar a explorar o novo mundo e "provar que era capaz" de se adaptar. "Dei muitas topadas (batia, tropeçava), mas fui conseguindo aos poucos, primeiro um bocadinho de caminho, depois mais um pouco, até que comecei a ir até casa do meu avô", contou. Quando a família se apercebeu de que afinal era capaz, começou a dar-lhe liberdade e António transformou-se praticamente no seu chefe. "Se eu continuasse a estar em casa toda a vida, debaixo da alçada dos meus pais, desequilibrava-me completamente, nunca conseguiria fazer nada sozinho", disse.
Teve aos 18 anos a oportunidade de frequentar, no Porto, um programa de reabilitação para invisuais, que tinha uma parte prática de trabalho. Meteu "uma cunha" e conseguiu ficar a trabalhar numa empresa de metalurgia. Foi metalúrgico durante 22 anos e nunca teve um acidente com as máquinas. Cansado da azáfama da cidade, e depois de o pai falecer, regressou à aldeia de onde não pensa mais sair. "A cidade só para passeio", afirmou. Já casou duas vezes e a actual esposa, Maria Aurora, assegura que o marido "não dá muito trabalho". "Pelo contrário", confessa que até é difícil a ela acompanhá-lo. "Tem mais vida do que eu", garante. O casal faz tudo junto e praticamente sem ajudas. Trata do gado, planta os campos, faz as colheitas, chega a apanhar três tractores de batata. "Nunca vamos ao mercado", asseguram.
Têm para durante todo o ano, com a ajuda de arcas frigoríficas, o que a maior parte dos consumidores só encontra vindo das estufas. A lide de António começa às cinco da manhã, almoça por volta das sete e leva sempre na sacola um "pouquinho de aguardente para desinfectar a pele", caso se aleije ou seja mordido por algum mosquito. Garante que o seu gado jamais entrou em terra alheia. António conhece e consegue distinguir os termos/limites dos pastos: sabe onde estão as hortas, os castanheiros, as entradas das propriedades e até pressente a aproximação dos lobos, que os cães se encarregam de afugentar. Apear da sua condição de invisual, raramente deixa perder algum animal. Apercebe-se se alguma ovelha está em apuros pela forma como "berra" ou pelo barulho dos silvados, que são muitas vezes armadilhas para estes animais. A tecnologia e a medicina evoluíram, mas António ainda não pensou em reanalisar o seu problema e tentar saber se já haverá alguma solução. "Foi muito difícil, mas sou um homem livre", frisa.